Complexo bem complexo
Não sei o que valem na psicanálise de hoje Freud e seu sofá, Freud e seus complexos. Sei que os gregos, muito antes desta nossa era cristã, já sabiam de coisas que marcaram de vez o que se pode chamar de civilização ocidental. O que eles nos forneceram - quase sempre através dos romanos - em matéria de ideias, sistemas, lendas, fábulas, é de nos deixar abismados. Alguém, pensando mais precisamente na capacidade grega de criar palavras denotadoras de abstrações, resumiu tudo numa bela frase, que Antenor Nascentes, heroico autor do primeiro Dicionário etimológico publicado no Brasil (1932), colocou em evidência: O latim, sem o grego, é como a aritmética sem as quatro operações. Seria preciso explicar mais? A verdade, contudo, é que as pessoas neste nosso conturbado mundinho usam e abusam de palavras e expressões, sem saber exatamente de onde provieram ou o que fundamentalmente significam. Não é, por exemplo, impossível que um sujeito qualquer, na primeira oportunidade surgida, diga que tem um primo que sofre do complexo de Édipo. Não resisto e corro ao Dicionário Aurélio do Século XXI e estaciono no vocábulo complexo. De cara são oito diferentes acepções de um termo que pode ser adjetivo ou substantivo. Vou ao sentido psicológico: "Conjunto de representações ou ideias estruturadas e organizadas por forte impregnação emocional, total ou parcialmente reprimidas, e que determinam as atitudes de um indivíduo, seu comportamento, seus sonhos, etc." E mais abaixo, no mesmo verbete, encontro complexo de Édipo como "inclinação erótica de uma criança pelo progenitor de sexo oposto, recalcada em virtude do conflito ambivalente com o progenitor do próprio sexo, ao mesmo tempo amado, odiado e temido. [Constitui uma etapa normal no crescimento psicológico da criança e torna-se patológico quando não resolvido.]" E dizer que Sigmund Freud foi buscar todo esse complexo numa lenda da mitologia grega cuja origem se perde na noite dos tempos... Jamais imaginaria ele que no Brasil do século XXI um amontoado de favelas também se chamaria complexo, como o do Alemão, da Rocinha, todos mal resolvidos socialmente. Ora, quase ninguém ignora — até porque a televisão já explorou exaustivamente o tema na novela Mandala — que Édipo era filho de Jocasta e de Laio, rei de Tebas. Não me lembro de quem fez o papel de Laio, mas Jocasta era nada menos que Vera Fischer, ainda muito dentro de sua esplêndida beleza física. A mesma Vera Fischer que na minissérie Desejo, interpretando Saninha, a mulher de Euclides da Cunha, colocara quase que o Brasil inteiro contra o nosso pobre escritor! E olhe que favoreceram muito Euclides, representado por Tarcísio Meira, um galã daqueles. Mas volto à lenda: levado pela curiosidade de recém-casado, Laio foi procurar o oráculo de Delfos para lhe indagar a respeito da felicidade naquele casamento. O oráculo, à semelhança do que ocorre muito em certo tipo de anedota, lhe informou: - Tenho para você uma notícia boa e outra ruim. Qual quer ouvir primeiro? - A boa, decidiu Laio. - Vocês terão um filho. - Ótimo! E qual a ruim? - Esse filho te matará!!! Laio, no auge da paixão pela mulher, talvez da mesma estirpe de Vera Fischer, aguarda ansioso pelo nascimento do filho, disposto a pôr imediatamente em prática um plano que evitasse a concretização daquele lúgubre presságio do oráculo. Assim que a criança nasceu, Laio entregou-a a um membro de sua guarda, dando-lhe ordens expressas que a matasse. O soldado levou-a até o monte Cíteron, o mais alto em volta da cidade, amarrou-lhe os pés e a pendurou numa árvore. Casualmente (sem o que não haveria nem a lenda, nem o complexo, nem esta narrativa), um pastor de rebanhos de Políbio, rei de Corinto (cidade a cujos habitantes São Paulo escreveu importantes cartas que nos leem e explicam até hoje e de onde se origina o adjetivo coríntios, em inglês Corinthians, etc., etc.), um pastor levou seus animais a pastar naquele monte. Ouviu gritos, procurou, procurou, até encontrar a criança dependurada. Desatou-lhe os nós e levou-a para Corinto. A rainha da cidade, que era maninha, isto é, não podia gerar filhos, engraçou-se desde logo pelo garotinho e lhe sapecou o nome de Édipo - o de pés inchados, certamente por causa do tempão em que ficou dependurado na árvore, de ponta-cabeça. Édipo foi durante anos e anos tratado como filho da rainha e acabou ganhando buço, engrossando a voz e querendo saber mais a respeito de seu passado, porque com certeza, como é quase praxe entre as mães dominadoras, a tal rainha lhe ocultou a verdade e procurou enrolá-lo de todas as maneiras e por muito tempo. Até que... Até que Édipo se encheu de brios e, curioso como o pai verdadeiro, também foi em busca do oráculo, que não só lhe confirmou o vaticínio anterior como ainda lhe apimentou o caldo: - Matarás o teu pai e te casarás com tua mãe! O rapaz nem voltou ao palácio. Caiu no mundo, porque achava que o tal rei Políbio era seu pai verdadeiro. Do templo de Delfos, onde o oráculo pontificava, externando as respostas que os deuses davam aos consulentes, mandou-se para Tebas. No caminho, um desconhecido, com ar arrogante, ordenou-lhe que saísse da estrada para deixá-lo passar. Édipo, malcriado como um verdadeiro príncipe, resolveu enfrentar o desconhecido, que ameaçou dar-lhe uma boa tunda, para que o molequinho respeitasse os mais velhos e lhes cedesse o passo. Nem houve tempo de uma boa tunda: Édipo matou-o com um golpe de espada! Não me venha dizer que você não desconfiou que aquele estranho era Laio, o verdadeiro pai! Édipo nem de longe imaginou que havia matado o pai e foi para Tebas, cidade em alvoroço por causa de um monstro com cabeça e peito de mulher, patas e garras de leão, corpo de cão, cauda de dragão e asas nas costas, uma espécie de precursor do helicóptero, a Esfinge, que devorava quem não lhe acertasse as perguntas. Encurtando a história, porque estou entrando na terceira folha, Édipo se propõe enfrentar a Esfinge, que lhe faz uma pergunta muito mais difícil do que as do Sílvio Santos a seus calouros: - Qual o animal que de manhã anda com quatro patas, ao meio-dia com duas e à noite com três? Édipo, afiadíssimo como um candidato a Faculdade séria, nem piscou: - Pois agora se prepare para ouvir minha resposta e morrer. O tal animal é o homem, que na manhã da vida engatinha, no meio-dia da vida anda com os dois pés e na noite da vida precisa de uma bengala! A Esfinge se espatifou contra um rochedo e Édipo foi coroado rei e, ipso facto, declarado marido da rainha Jocasta! (Mas nem novela mexicana! Nem filme brasileiro da Atlântida, lembra-se?) Um flagelo se abateu sobre Tebas, porque a morte de Laio (ainda não se esqueceu dele, né?) não tinha sido vingada. Aí o sagaz adivinho Tirésias descobre que o assassino do rei tinha sido o próprio Édipo!!! Vera Fischer, ou por outra, Jocasta, que não devia ter nenhuma queixa do desempenho de Édipo, um garotinho legal, não suporta aquela verdade tão dura e se enforca. Édipo, arrasado com as trapaças do destino, julga-se indigno de enxergar a luz do sol e fura os próprios olhos. Dramalhão, não?
14/09/2013
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