Pensando em Drummond
Tive ensejo de pessoalmente conhecer Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores nomes da literatura brasileira e principal homenageado, este ano, no Festival Literário de Paraty. Em longínquo dia de abril de 1985 pude encontrá-lo descontraído num sabadoyle, mistura de sábado e Doyle, de Plínio Doyle: a reunião frequentada por muita gente famosa, de Drummond a Pedro Nava. (Em todos os lugares foi-se perdendo o culto da boa conversa, de que o sabadoyle constituiu até a morte de seu fundador a exceção, gloriosa exceção. Definiu-o Drummond como um grupo de pessoas que não pretendiam fazer qualquer negócio, nem alterar o que quer que fosse na ordem política do mundo. Pessoas que, durante três ou quatro horas, podiam dar-se ao luxo da dedicação a uma atividade gratuita. ) A sede do sabadoyle ficava num apartamento de segundo andar da Rua Jaguaribe,74, em Ipanema, Rio de Janeiro, de propriedade de Plínio Doyle, bibliófilo dos mais ilustres, comparável apenas a José Mindlin. Lá compareciam os amigos de sempre e os adventícios de sempre, estes mutáveis a cada semana. Eu fui um dos adventícios. Encontrei CDA num quarto-biblioteca, porque tudo naquele apartamento servia de lugar para livros. Ele me recebe e ao grupo de outros rio-pardenses com a polidez mineira e mostra-se afeito às boas palavras que lhe dedicamos. Deixa-se fotografar conosco, responde a tudo que lhe é perguntado. Atende a outros admiradores, mas de repente, já não está mais à vista. Explicam-me que ele era assim mesmo: sem alarde, sai à francesa, usando discreta passagem que ia direto dos quartos para o elevador. Eu remeti-lhe todos os estudos que elaborei e publiquei a respeito de sua poesia e de sua prosa; jamais deixou de responder-me, ainda que de modo formal e conciso. Recordo agora a crítica contundente que seu livro de estreia, Alguma poesia (1930) , recebeu de Medeiros e Albuquerque no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, sob o faceto título de “Alguma tipografia”. Medeiros, pernambucano nascido em 1867 e morto em 1934, estudou no Brasil, em Portugal e na França. Abolicionista, é o autor da letra do Hino da Proclamação da República (Seja um pálio de luz desdobrado/ sob a larga amplidão destes céus / este canto revel que o passado/ vem remir dos mais torpes labéus) musicado por Leopoldo Miguez e hoje mais conhecido pelo estribilho Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós. Professor, conferencista, diplomata, Medeiros e Albuquerque viveu entre 1910 e 1916 exilado na Europa, por motivos políticos; membro fundador da Academia Brasileira de Letras, era tido como representante da belle époque, ainda é de vez em quando lembrado como memorialista (Quando eu era vivo...), em que há certas páginas de graça e humor, com linguagem hábil, lembrando vida boêmia, extravagâncias, aventuras e conquistas amorosas. Foi o primeiro crítico a tratar no Brasil do Simbolismo. Ora, a um homem culto e de gosto estratificado, como soariam aos 63 anos de idade as inovações drummondianas, tão desvinculadas dos princípios estéticos que professava, da musicalidade evanescente, das estranhas pesquisas sinestésicas estimuladas até pela ingestão de tóxicos como excitantes das faculdades criadoras? Medeiros e Albuquerque vê a poesia de Drummond a uma distância que nada lhe traz do passado vivido, de uma concepção de mundo definitivamente enterrada com a 1ª Guerra Mundial. Razão tem outro velho culto e cético, João Ribeiro, mais ou menos contemporâneo de Medeiros: no que escrevemos não está o que pensamos, mas o que os outros pensam em nós. Quer dizer: em verdade quase tudo que nós pensamos vem de fontes remotas, atávicas, inconscientes, aprendidas e até mal aprendidas. Nosso pensamento é apenas a memória crepuscular de coisas várias e antigas. Somos todos vítimas desse equívoco, que celebramos como originalidades palpitantes. Medeiros e Albuquerque em 1930 ainda pensava poeticamente como Baudelaire, Verlaine e Mallarmé e via ainda validade numa tendência estética que valorizava a imaginação barroca, a sensibilidade frenética, o temário mórbido, a intemperança verbal, os neologismos extravagantes, a sintaxe desintegrada e os dois termos mágicos: neurose e alma. Era muito mais que simbolista; era decadentista! Como, pois, festejar o advento de Carlos Drummond de Andrade com sua antipoesia, com o piadismo tão ao gosto dos modernistas? Poderia o cosmopolita Medeiros e Albuquerque entender o provinciano Drummond e seus temas do cotidiano, do local, do familiar? Ao invés da intemperança verbal – o antilirismo de propósito, a afetividade subterraneamente contida? Como imaginar que com aquele livrinho apenas bem impresso se iniciava um trabalhoso processo de elevação da poesia, independentemente de sua roupagem, à mais perfeita expressão metaforizada de uma individualidade consciente e participante de seu mundo e de seu tempo? Arrolo os tópicos principais da crítica de Medeiros e Albuquerque e procuro entendê-los numa perspectiva atual – Medeiros esquecido e CDA elevado à categoria de porta-voz idôneo de sua época , tantas vezes poeta público, suportando em seus ombros o mundo: Depois de transcrever o “Poema das sete faces”, pergunta Medeiros se “há algum leitor que ache poesia nessa moxinifada”. Corro ao dicionário e fico sabendo: moxinifada= confusão, embrulhada. Certamente que o conceito de poesia mudou, a ponto de se libertar da rima, da pontuação, como lembra Drummond na sexta face: “Mundo mundo vasto mundo/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima/ não uma solução”. Verdade seja dita: muito difícil, sem o conhecimento dos incidentes biográficos apenas mais tarde esclarecidos, dar o merecido valor à sexta posição (ou figura) da “Lanterna mágica” sobre Nova Friburgo: “Esqueci um ramo de flores no sobretudo” – que Medeiros classifica como poema (deve ser poema, explica entre parênteses) e avalia assim: ”Como descrição sintética de Nova Friburgo parece que não se pode pedir mais”. Não poderia ele adivinhar que a intenção do poeta era muito mais a de esquecer que a de lembrar... Que o ramo de flores no sobretudo representava uma espécie de falha na sua inspeção de nada trazer, não da cidade, mas do colégio interno... Seria pedir demasiado que Medeiros e Albuquerque percebesse, como o fez Manuel Bandeira, que em “Política literária” ( O poeta municipal/ discute com o poeta estadual /qual deles é capaz de bater o poeta federal. // Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz), há uma cautelosa maneira de sentir e refletir, maneira desconfiada do entusiasmo fácil, plena de segundas intenções e pessimistamente reservada. Em suma: a crítica mordaz de Medeiros e Albuquerque apenas revelou sua coerência com seu passado e com um formalismo que ainda hoje persiste – entre os menos teorizados – a respeito da finalidade e modos de expressão da poesia. Não deixa, contudo, de ser esclarecedor notar que mesmo entre a elite intelectual , anos depois do escândalo da Semana de Arte Moderna, ainda as obras poéticas de feição anticonvencional eram de modo geral catalogadas como futuristas, emprestada ao termo a conotação mais negativa possível. Dogmaticamente adverte Medeiros e Albuquerque: “ E vendo-o ( o livro de estreia de Drummond), a gente pergunta com espanto: Pois ainda há disto? Porque por aqui ao menos, na Capital do País, ninguém mais fala nesta borracheira. Passou. Acabou-se.” Engano, não quanto ao destino do Futurismo em si, mas em relação à trajetória de um poeta que, segundo o crítico, começava com “volume bonito, bem impresso. Mas oco. Não tem nada dentro”. Alguma tipografia, se tanto.
14/07/2012 |