Crônica de cachorros

    

Não sei por que se fica tantos anos sem pensar em  ter um cachorro. Esse animal faz bem, é otimista, gentil, devotado. Mas o melhor que ouvi a respeito dele é que de seu dono ele só vê o que tem de ótimo. Tão diferente de tantas pessoas que sempre buscam  um mas para desvalorizar o que os outros fazem, dizem, são. É da natureza humana, sem dúvida.

De minha remotíssima infância no Buracão guardo alguma coisa de três cachorros, apenas um deles nosso de verdade.

Meu avô materno César Bertocco não devia dar muita importância a seu velho cão, cor de mel,  sossegado, entediado, bernento. Era o Fiel, que ficava deitado ao sol na calçada, indiferente a tudo. Talvez já tivesse sido ativo e atento, mas pagava o tributo da idade.

Meu avô paterno, Antônio Lauria, quando morador por curto período na mesma Rua José Teodoro, mantinha acorrentado o Nilo, pretíssimo, bravíssimo, solto apenas quando todas as pessoas da casa estavam recolhidas, noite fechada. Então ele corria, latia, espantava os gatos intrusos, tomava conta de tudo. Era um guarda cioso daquele grande quintal. Em meu ouvido ficou a memória do ruído da corrente de ferro que ele arrastava em sua pequena área de movimentação diurna.

Quando nos mudamos do Buracão para um enorme  sobrado hoje demolido na Rua 13 de Maio, levamos para lá um cachorrinho branco, o Lulu. Lembro-me de tê-lo visto sendo castrado com navalha. Ao fim de uma cruel e rapidíssima operação, o capador mostrou a meu pai dois bagos negros,  enquanto o animalzinho urrava de dor e se esvaía em sangue. Lulu sempre foi justificadamente triste: apenas dava seus  latidos burocráticos para anunciar a chegada de estranhos. Depois, voltava a se alojar, sem energia vital, gordo e lento, debaixo de um guarda-comidas. Nem sabia brincar. Lá de vez em quando saía de sua apatia de eunuco e se dignava segurar com os dentes um pano que eu lhe oferecia para puxar e rasgar. Tudo muito sem vontade. Sabia obedecer apenas a uma ordem: “Dá a mão, Lulu!” – Então ele levantava a pata dianteira direita. Um cachorro triste, com alguma coisa dessa indisfarçável tristeza que marca  as pessoas de tantos modos castradas. Morreu de velho, foi recolhido pela carrocinha do lixo. Ninguém em casa voltou a falar nele. Teve a sina de quem passou pela vida em brancas nuvens.

Foi numa noite de chuva que nos apareceu aqui na Várzea – muitos anos depois – um cachorrinho amarelo, sujo e faminto. Apareceu, ficou, acostumou-se ao nome Veludo, que sobrepusemos a um outro que deveria ter. Jamais perdeu certo tremor e um brilho pânico nos olhos subservientes, como se não tivesse mesmo razão para acreditar que alguém pudesse ao menos não o maltratar. Talvez tivesse sido criado na roça, porque morreu atropelado, embora nossa rua fosse ainda de terra e de muito pequeno movimento de veículos. Mas há cachorros destinados a morrer assim, para mostrarem aquela máscara mortuária  com um sorriso escarninho, quase cínico (para fazer jus à etimologia) como se a gente não soubesse que morrer dói.

Depois, surgiu, ficou um pouco e morreu de morte natural a cadelinha Punk, escândalo de nossas crianças, tais e tantas as exigências carnais que demonstrava nas temporadas do cio.

Foi meu filho caçula, então adolescente, quem ganhou de presente – ainda na barriga da mãe – um perdigueiro de boa casta, nascido afinal numa ninhada de sete ou oito. Até as vésperas do nascimento, meu filho e outros donatários  não se cansavam de visitar a cadela. Antes do desmame dos filhotes, lá ficavam eles, mirando, afagando, comparando.

Até que o perdigueiro sem nome  pôde ser trazido para casa, numa caixa forrada, com instruções precisas sobre alimentação, vacinas, lombrigueiros, colírios.

Cresceu num repente, afogado em atenções, brincadeiras, rações mais que balanceadas.

Um dia, meu caçula tornou público a quem interessar pudesse que não gostava de cachorros.

E o perdigueiro sem nome passou a ser meu. Dei-lhe muitos banhos, comprei tudo contra pulgas (até uma coleira repelente), gastei por todas as formas em troca do prazer de alisar aquele pêlo luzidio de animal estabanado, entrado na segunda infância. Ele aprendia brincadeiras e ordens, mas só queira dormir dentro de casa, onde fez notáveis estragos. Gania e latia a qualquer hora, se não tivesse minha atenção. Cheguei a sentir na pele a aversão do criado espanhol inventado por Machado de Assis para azucrinar a vida do cachorro Quincas Borba. De brincadeira, mas com momentânea raiva, cheguei a xingá-lo de perro del infierno...

O inominado perdigueiro fugiu (ou foi roubado?) e achado preso num quintal distante. Fez muitas festas para todos ao sentir-se de novo em casa; lambeu a cara de cada um, ganiu baixinho num tom interpretável como de reconhecimento. Emitiu latidos  curtos, abanou muito o rabo. Deu, enfim, provas cabais de que sentira falta das pessoas e das coisas, principalmente das rações balanceadas e de outras mordomias de cama, mesa e banho.

Pêlos lisos, olhos sem ramelas, dentes claros, patas firmes, barriga enxuta. Apetite onerosíssimo e talvez a instintiva esperança de ainda amarrar uma perdiz e trazê-la abatida aos pés do dono.

Até que sumiu de novo. Procurei por toda parte, botei anúncio na rádio, prometi recompensa, segui todas as pistas que me deram. Por causa dele percorri ruas sem nome, bibocas intransitáveis, chácaras, sítios e granjas. Nunca mais.

E dizer que por causa daquele perdigueiro apalhaçado e de nenhum futuro como guarda de casa, dizer que por ele perdi tantas horas de buscas, com real angústia no peito  e um sentimento muito próximo da saudade!

E agora, há uns três meses, a novidade trazida pelo filho caçula, já nem tão com jeito de  caçula: ia ganhar  um filhote de labrador.

Nem precisei dizer que eu não queria cachorro aqui em casa.

-- Não, ele vai ficar aqui só por uns tempos e depois o levarei para o meu terreno. Ele é cão de guarda.


Vlad

Chegou o labrador, preto,  com nome e tudo: Vlad, parece que forma reduzida de Vladimir, lembrança  talvez do conde Drácula. Não entendi muito bem a linha de raciocínio de meu filho, mas como o cachorro não seria meu nem permaneceria muito tempo aqui por perto, fiquei bem quieto e aparentemente alheio a tudo que dizia respeito a cinofilia aplicada.

Na verdade, Vlad  é encantador. Foi acostumado fora de casa, dorme cedo e acorda em horário decente, lá pelas sete. Aí começa a ganir, a latir, depois a dar mostras de impaciência com aquele alambrado que lhe tolhe os grandes movimentos. Um cão inteligente, dócil e sei lá que mais. Você está percebendo que me afeiçoei a ele, e é pura verdade.


Meu neto Tomás, filho da Paula,  muito apegado ao Vlad

Comprei-lhe umas coisas, li sobre a raça na internet. Parece que a origem dela não é a península de Labrador no Canadá, mas a Terra Nova (Newfoundland), que não fica longe dali. Para nós não faz a mínima diferença.

Não. Vlad não ficará aqui por casa. Vai morar na chacrinha de meu filho, tomar conta das coisas.

Mas estamos todos conversados: de vez em quando ele passará umas horas aqui, do mesmo modo que de vez em sempre minha mulher e eu lhe faremos umas visitas pelo singelo prazer de agradá-lo e ter  renovada a sensação de como  é muito bom sentir por perto um cachorro amável.

 

 

14/07/2007
(emelauria@uol.com.br)

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