Mantendo a forma mental

  
 

 Já faz algum tempo, fui a cidade vizinha conversar com animado grupo de muitas senhoras e poucos senhores que integram um centro de estudos. Sim, benéfico modo de manter unidas e em alerta mental pessoas acima dos sessenta que gostam de conviver e aprender.

Quinzenalmente se reúnem por duas horas e ouvem os mais diversos expositores falando sobre temas dos mais variados. Meu assunto chamou-se “O homem e as línguas”, título que tomei emprestado de excelente livro de Frederick Bodmer, traduzido com muita propriedade em 1960 por três eruditos escritores: Aires da Mata Machado Filho, Paulo Rónai e Marcelo Marques Magalhães, nomes que hoje ninguém lembra.

            Tomando algumas palavras como pretexto e ponto de partida, misturei gramática, etimologia, semântica, fonologia. Parece que gostaram do que eu disse, mas com certeza eu gostei muito mais, porque me senti senhor dos assuntos de que tratei, com a memória pronta e a concatenação de frases fluindo com naturalidade. Como diria o meu ex-aluno, hoje meu urologista,  para minha idade isso é ótimo.

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Dias depois, sai o resultado de rigoroso censo da  universidade brasileira, em que são mostrados com total crueza  os seus defeitos capitais. Entre eles, uma triste comprovação: quase metade dos alunos que ingressam numa escola superior particular NÃO CONCLUI o curso. Nas universidades públicas, o nível de desistências também é altíssimo  –  mais de  trinta por cento. A razão principal dessa evasão em todas as escolas é que os desarmados estudantes não conseguem acompanhar os conteúdos dados porque não entendem o que os professores ensinam.  Falta-lhes o básico  do que deveriam ter aprendido no ensino fundamental e médio. Ou seja, não retiveram quase nada do que foi visto, ou pior, não viram nem metade do que deveriam.

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Dois depoimentos importantes  na tentativa de entender  essa dura realidade. O coordenador do censo diz: “Não adianta a escola superior alegar que o erro vem de outros graus de ensino. Cabe a ela resolver ou minimizar o problema de falta de conteúdo de seus alunos, até através de aulas de reforço”. E uma professora de Educação da USP, com jeito e fisionomia de pessoa experimentada, dá o grande conselho aos alunos de todos os graus e de todos os cursos: “Leiam, leiam. Ainda que seja revistinha, leiam. Sem isso, não se aprende nada”. Forte, não? Fica assim mais uma vez reconhecido o poder insubstituível  da leitura e sua íntima relação com a capacidade de falar, de escrever, de entender o que os outros dizem e escrevem.

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No aspecto quantitativo, nunca houve, como hoje, tanta coisa para ler: além de uma gigantesca produção editorial, a internet põe à disposição de todos uma quantidade impressionante de material para leitura. É tal o volume de assuntos disponíveis, que a vida toda já não daria para alguém dominar tudo o que está gratuitamente acessível num só dos grandes temas da humanidade. Já no aspecto qualitativo, nem tudo é bom: nada que se compare ao que as boas escolas  exigem de seus alunos, especialmente no aspecto de lhes cobrar leituras de autores conceituados no campo da literatura. O descaso nesse aspecto atingiu tal grau de profundidade, que hoje aqui no Brasil se pensa  em oferecer aos alunos versões resumidas de grandes obras, como se eles não tivessem capacidade de enfrentar os textos originais.

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As muitas formas de medir a capacidade de leitura dos estudantes do mundo têm revelado verdades nuas e cruas. Por exemplo, o baixo desempenho que os brasileiros demonstram no quesito qualidade da leitura. Sim, isso mesmo: se estudantes de cinquenta países participam de um concurso sobre o tema, infalivelmente a classificação brasileira é lá embaixo, depois do quadragésimo quinto.

Partindo-se da realidade segundo a qual  as nossas vidas são muito curtas para usufruirmos  todas as oportunidades da trajetória humana, nosso conhecimento a respeito das mais importantes  situações da experiência que vamos adquirindo está diretamente ligado à leitura que tenhamos feito dos relatos alheios. Ninguém consegue descobrir todas as coisas por conta própria.  Deve-se mesmo considerar  seriamente um dos mais atuantes itens na vida intelectual o poder da leitura, raro exemplo de domínio permanente de alguém sobre os problemas que o cercam.

Desse poder da leitura decorre não apenas a força do conhecimento, mas, sobretudo, a aquisição de um tipo de qualificação que nada tem de transitório. Um homem politicamente poderoso, outro homem economicamente sólido podem perder a força política  e a força econômica. O mundo guarda milhares de ex-líderes, de ex-magnatas. Nunca, porém, se dirá de alguém que foi culto e não o é mais, exatamente porque cultura é um bem que não se perde e, além de tudo, não conhece limites de expansão.

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Claro que os pouco lidos e os de nenhuma intimidade  com a palavra escrita bem que gostariam que ocorresse uma espécie de nivelamento por baixo em todos os setores da atividade humana, de forma que desaparecessem as insistências em torno do ler e do escrever. A realidade é bem outra, pois a reflexão crítica  e a própria verticalidade do conhecimento exigem  o contato direto com a fonte (quase sempre o livro). Os veículos de comunicação de massa apenas transmitem informações horizontais sobre a realidade das coisas, formando a chamada cultura de superfície. A verdadeira cultura, aquela que vai muito além das sensações epidérmicas, reclama a consulta ao texto integral e questionador, capaz de estabelecer verdades seguras e definitivas.

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Também os governos de alguma tendência demagógica e continuísta dão pouco ou nenhum valor à qualidade da leitura ofertada pelas escolas de diferentes graus; isso, porém, faz toda a diferença entre cidadãos de cultura sedimentada (e por isso mesmo em condições de discutir com sérios argumentos, de discernir o bom do ruim, de votar com plena consciência) e essas legiões de pessoas  que, mesmo sem profundidade de conhecimento, acabam ocupando cargos e funções muito acima de sua real capacitação intelectual. O resultado é isso tudo que se está vendo por aí.

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Para um homem de cultura, deixar de ler é tão grave quanto deixar de se alimentar. Para quem escreve, é a leitura que faz descobrir sensações e impressões; é a leitura que facilita o acesso  aos recantos da memória relegados ao esquecimento. A leitura traz à tona uma espécie de conhecimento  que exige a expressão escrita para aparecer. Se não se tenta escrever sobre isso ou sobre aquilo, perde-se para sempre um precioso material de cuja existência nem sempre se tem clara noção.

E assim, exatamente na era da imagem e do som, a leitura se torna mais urgente e necessária para todos quantos não se conformarem  de ficar limitados  aos estreitos espaços do factual, onde predomina a informação rasa e acrítica, uma eterna recapitulação do que aconteceu no último capítulo da telenovela  ou  o comentário requentado do que todos viram no mesmo programa  dominical da TV de maior audiência nacional.

Felizmente, o hábito de ler admite o ingresso de retardatários  com vontade suficiente para vencer a paralisia mental dos acomodados. O tempo perdido é parcialmente recuperável e capaz de conferir outra dimensão à própria significação da vida de cada um.

 

14/06/2014
emelauria@uol.com.br

 

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