AINDA O ROLO ESTENDIDO

 

            A publicação em tamanho máximo da foto com a turma de 1951 do TG-46 agradou em cheio. Temos de agradecer ao pessoal do DEMOCRATA, porque muito mais do que qualquer referência contida no texto, a generosidade do espaço e a nitidez das pessoas falaram mais alto. Afinal, vivemos um mundo de imagens, em que se garante: uma fotografia vale por mil palavras. Como são mais ou menos noventa pessoas envolvidas, pode-se forçar a falsa conclusão de que aquela  enorme foto valeu por noventa mil palavras evidente exagero.

            Ouvi comentários das mais variadas origens, até de quem eu havia omitido por ignorância. Existem, felizmente, pessoas que apenas gostaram de rever-se no meio de esquecidos companheiros. Dizem que vão guardar bem a página depois  de a haverem mostrado a amigos, vizinhos, parentes, especialmente netos e – por que não? – bisnetos.

            Também se comunicaram comigo uns companheiros muito retraídos que ficaram espantados de eu ainda lhes ter recordado as fisionomias e os nomes. Ora, ora, repito aqui, vivíamos nós todos um especial instante da vida em que se constroem as amizades e as simpatias (também as antipatias) que nada têm a ver com situação social, profissional ou cultural. O que cada um de nós ganhou naqueles meses de convívio foi muito enriquecedor em termos de camaradagem e aquisição de experiências. Esta agradável sensação de nivelamento permanece até hoje.

            Houve quem me lembrasse de situações muito particulares que eu teria deixado de citar, como se aquele texto fosse algo mais do que meu modo de ver e apreciar as coisas. Inegável é que desenterrei defuntos e deitei alguma luz em fisionomias hoje um pouco fora de circulação e até desejosas de aparecer mais. Que fazer além disso, porém?

            Gostei das mensagens de Vanildo Costa, Roque Cônsolo e Benedito Martinussi.

            Está muito nítida a plaquinha com o número 177. É da Rua 13 de Maio, hoje entrada do salão de exposições da Casa de Cultura Euclides da Cunha. Funcionava a sede do Tiro-de-Guerra; eram dadas as aulas mais ou menos teóricas, alguns exercícios práticos, como a desmontagem e remontagem do armamento então disponível – o fuzil Mauser (alemão), modelo brasileiro de 1908. Não se ria! É isso mesmo: modelo brasileiro de 1908. E por que modelo brasileiro? Porque lhe tinha sido acrescentada uma espécie de cobertura de madeira (telha) sobre a coronha, em lugar próximo à câmara de combustão dos projéteis, para impedir eventual  queimadura nas mãos do atirador, isso se ele disparasse  um grande número seguido de tiros. Hipótese remotíssima, porque no período todo de instrução cada um de nós não deve ter dado mais que trinta tiros, num estande improvisado no meio de imenso pasto de propriedade do Sr. Otto Bittencourt, depois loteado  e urbanizado com o nome de Vila Formosa. Alguns de nós ficavam longe dos alvos, em atitude de alerta, para agir no caso pouco provável de algum passante andar por aqueles distantes ermos.

            O fuzil era bom, com alça de mira, capaz de atingir alvos a mais de mil metros. Disparos a cinqüenta ou cem metros eram muito precisos, dependendo da destreza do atirador: ao lado de uns descalibrados naturais, cujos tiros tomavam rumo para sempre ignorado,  havia um pessoal de primeira linha que acertava no círculo central do alvo quantos tiros desse. Gente que sabia lidar com espingardinhas de chumbo ou de calibre 22, que com elas acertava não um passarinho, mas o ramo seco em que ele pousava lá no alto de uma árvore...

            Havia um sujeito miudinho, moreninho – não sei se esqueci de propósito o nome dele --  que  num desses exercícios de tiro real  resolveu tomar vingança de seu desafeto – o terrível José Jorge, espírito brincalhão e por vezes impiedoso. José tanto aborrecia o tal sujeito, que quase foi vítima de tiro de fuzil com bala de verdade. Por sorte, a bala passou rente a seu braço que estava em posição de asa de açucareiro. A manga da sua túnica ficou chamuscada. Frustrado o tiro de fuzil, o sujeito ainda tentou de diversos modos matar José Jorge, inclusive lhe oferecendo , muito suspeitosamente, uma bala (doce) em cujo interior ele havia injetado com agulha uma pequena quantidade de gasolina! Nunca mais ouvi falar desse matador em potencial.

            Acho que ninguém da turma se esquece de dois episódios marcantes:

          1.   O momento num desfile de importância cívica em que descíamos marchando a Rua João Pessoa, hoje Francisquinho Dias: o sargento Josias, em farda de gala e à frente de sua tropinha, saiu de forma e foi arrancar com a espada o chapéu de um assustado espectador que, na calçada, não se descobrira à passagem da bandeira brasileira, garbosamente conduzida por Roberto Del Guerra e guardada por seis outros atiradores, eu no meio.

           2. A grande marcha anual com destino a Itobi, o que daria mais de trinta quilômetros, ida e volta. Muitos pés se encheram de bolhas com aqueles botinões pesados e rústicos. Acho que até os do sargento, porque a certa altura do trajeto, lá pelos lados da estaçãozinha de Vila Costina ou Engenheiro Rohe, ele deu por cumprida a primeira parte da marcha, mandou o pessoal descansar um pouco e logo retomar o caminho de casa.

           Lembro-me sem mais detalhes de uns exercícios de ordem-unida  no Largo da Estação e depois a turma toda sentada no escadão, hoje reduzido a uma escadinha atrás da Rodoviária; de umas sessões de Educação Física no campinho do Vasco,  branco de orvalho,  onde se jogava uma tal bola militar, tipo de handebol, de que nunca mais tive notícia.

             O sargento Josias era muito cortês comigo, chamava-me de professor ( eu já era, tendo umas aulas no “Euclides da Cunha” e na Associação de Ensino, e as dava até de farda), atribuía-me umas tarefas de assistência a outros companheiros, de zona rural (ou quase). Às vésperas do exame final, ele me disse que esperava muito de mim e eu não entendi bem por quê. Quando chegou a hora da argüição  oral, de enfrentar o examinador (talvez  primeiro-tenente), o homem me colocou em xeque:

            -- Vou lhe fazer uma pergunta. Se acertar, eu me darei por satisfeito. Um tiro de fuzil  atinge mais rápido seu alvo no inverno ou no verão?

            Aquilo não constava do precário manual que usávamos, cuja preocupação  maior era a formação de um grupo de combate (atirador, municiador, remuniciador e o resto que esqueci) ou o nome correto das peças do fuzil Mauser, modelo brasileiro de 1908.

            Não sei se por sorte ou por me lembrar de alguma coisa das aulas de Física do Dr. Juquita, arrisquei:

          -- No verão.

          --  E por quê?

          -- Porque o calor expande o ar e diminui sua resistência.

           Nada mais me foi perguntado.

            O examinador cumpriu sua promessa. O sargento abriu seu melhor sorriso nordestino. Eu dei graças a Deus por ter escapado da armadilha.

 

14/05/2002
(emelauria@uol.com.br)

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