Tudo por um fio
Caminhando um dia destes pela Rua Francisco Glicério, dou com agradável surpresa no passeio do prédio da Telefônica – a tampa de um bueiro de telefonia com um caprichado logotipo: entre dois telefones estilizados, uma figura humana e a marca ETICSA, da Empresa Telefônica Irmãos Camargo S.A., durante muitos anos a detentora dos direitos de telefonia na cidade, depois encampada pela Telesp.
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Voltando no tempo: ter um telefone particular era privilégio; as poucas centenas de linhas disponíveis quase sempre se instalavam em estabelecimentos comerciais. Meu avô materno, César Bertocco, tinha um – o de número 106, dos mais antigos da cidade. Era para atender seu negócio de secos e molhados, no Buracão, além de servir, em ocasiões especiais, a uma vasta vizinhança que nem sonhava com a possibilidade de um dia merecer em casa aquela máquina falante que resolvia tanta coisa, que dava notícias de longes terras, de namoros, casamentos, batizados, mortes. Principalmente de mortes. Lembro-me de minha amável tia Luiza Della Torre Bertocco respondendo a chamadas com sua imutável identificação: “Aqui é da casa de César Bertocco. Quem está no aparelho?”
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Meu pai, com seu Salão Glória, instalado no térreo de um sobradão da Rua Treze de Maio, onde hoje se ergue o Edifício Trevisan, também tinha o seu: um Kellog, de parede, em madeira marrom, duas pilhas gigantescas e campainhas externas, sob o número 218, sempre à disposição de suas exmas. freguesas, como garantia velho anúncio num jornal da terra.
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Para se falar com alguém, chegava-se o mais perto possível do bocal, ajeitava-se o fone de ouvido, girava-se a manivela e esperava-se que a telefonista atendesse. Quase ninguém sabia número de telefones locais. Pedia-se à telefonista que nos ligasse com fulano de tal. Elas sabiam de cor todos os donos dos números. Às vezes, isso demorava alguns minutos, mas se a ligação fosse interurbana, minutos se transformavam em horas, isso se não tivesse ocorrido nenhuma queda de linha ao longo de quilômetros e mais quilômetros. Ligações para São Paulo eram de desanimar: três, quatro horas de espera, quando tudo corresse bem. À beira da rodovia de terra, rumo a Campinas, podia-se ver centenas de fios telefônicos, de espaços em espaços sustentados por rústicos postes de madeira. Quando esses fios se partiam ou os postes caíam, as ligações ficavam interrompidas. Tempos que não deixaram saudades a ninguém.
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Anos depois de casado e com três filhos pequenos, senti a necessidade de pleitear uma linha particular. Comprei um aparelho Ericsson, de mesa, preto, de manivela, usado, de preço salgado, e fui a um dos irmãos Camargo, meu amigo Roberto, que logo jogou um balde de água fria em meu entusiasmo. — Não temos linhas disponíveis. Só se ocorrer alguma desistência, o que acho difícil. Você entra na fila de espera... Com demora não tão exasperante como cheguei a supor, logo Roberto me comunicou a existência de vaga numa caixa de coleta situada num poste lá no meio da Rua Silva Jardim. Ele poderia instalar a linha em minha casa, desde que eu comprasse a fiação de alumínio que fosse até a tal caixa, numa distância aproximada de seiscentos metros. E assim foi feito: eu comprei os fios aluminizados (cerca de mil e duzentos metros, para ida e volta do som) e comemorei aquela aquisição tão útil, de preço exorbitante. Meu número? 640. Aí, minha família, que se valia sempre que necessário dos favores telefônicos da vizinha Ana Viadana, passou a usufruir aquela modernidade toda, extensiva a outras pessoas das redondezas.
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A promessa da ETICSA de instalar telefones automáticos na cidade foi das melhores notícias da década de sessenta. Demorando um pouco mais do que o previsto, num domingo de manhã pudemos todos aqui de casa estrear o novo serviço. Nosso telefone Standard Electric, de discar, era ostensivamente vermelho e tinha um belo número: 3-755. Que maravilha! Que sensação de progresso! Quantas ligações supérfluas fizemos... Era preciso se familiarizar com o serviço, avisar parentes distantes, ingressar, enfim, numa era de tecnologia mais avançada, sem auxílio de telefonistas.
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Logo depois de inaugurada a telefonia automática, recebo estranha encomenda: cinco ou seis rolos de arame – aqueles mil e duzentos metros de fios de alumínio que me garantiram o primeiro telefone, a ETICSA me devolvia. Quanta coisa fizemos com aquela fartura de arame de fácil manuseio: varais e mais varais, estaleiros para as parreiras, suportes, amarrações de cercas de bambu, sei lá que mais.
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DDD, DDI – hoje comodidades corriqueiras na vida de todos nós, reaproximaram pessoas, facilitaram negócios, criaram mil oportunidades de comunicação e convívio. Representaram saltos tecnológicos de extrema grandeza, devidamente apreciados apenas por quem vivera antigas situações de atraso, de quase incomunicabilidade social.
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Hoje é o que se vê: o mundo invadido por sofisticados aparelhos que até servem de telefones, mas fotografam, enviam e-mails, sintonizam tevês, servem de calculadoras, tocam música de todo jeito, recebem e gravam documentos. A telefonia fixa está por toda a parte, até em orelhões, hoje meio desprezados, porque o celular ficou ao alcance de quase todos. As classes sociais emergentes veem nesses aparelhinhos o concreto índice de melhoria de status. O Brasil tem hoje mais celulares do que habitantes, coisa de duzentos e dez milhões para cento e oitenta milhões de habitantes.
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Graham Bell não poderia, mesmo, imaginar a que ponto seu rudimentar invento pudesse contribuir para tornar o mundo menor, para o bem e para o mal. Muito menos o nosso imperador Pedro II, que na exposição universal de Filadélfia, em 1876, fez papel de provinciano basbaque ao usar o então recente invento de Bell e exclamar entusiasmado: - Meu Deus! Isso fala!
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Roberto Camargo foi, dos meus amigos bem moços, um dos mais estimados e admirados. Bela inteligência, metódico, variado em interesses, capaz em tantos ramos. Conheci-o mais de perto quando ele lecionava no “Euclides da Cunha”, no curso ginasial pluricurricular. Depois, na Faculdade de Filosofia, onde ele foi professor e até diretor, por algum tempo. Após a encampação da ETICSA pela Telesp, Roberto mudou-se para Campinas, exercendo altos cargos em instituições financeiras de primeira linha. Percorreu o Brasil todo, morou no Rio de Janeiro, no Nordeste, em Brasília. Nunca perdemos totalmente o contato, seja por presença física ocasional, seja através de troca dos textos que escrevíamos. Enquanto eu permaneci na colaboração jornalística, Roberto Camargo publicou diversos livros sobre assunto em que ele se empenhou a fundo e muito se destacou: espiritismo, mediunidade. Acabou voltando para Campinas. Vítima de câncer, faleceu há poucos anos. Recebi e-mail de uma de suas filhas comunicando o triste ocorrido e pedindo-me que participasse de uma corrente de preces por ele.
14/04/2012
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