A TV Brasil, Alberto Dines e o centenário
 

Recebi sem maiores expectativas o convite de Marly Terciotti, curadora da Casa Euclidiana, para dar entrevista à televisão.

Percebi que ao menos uma diferença havia entre a que se planejava e as anteriores, quase sempre concedidas à EPTV, afiliada regional da Rede Globo. Porque já se sabe: na EPTV, você responde às perguntas elaboradas quase sempre sem originalidade, gasta seu latim durante meia hora ou mais e o resultado é sempre aquele: não mais de um minuto no ar, com frases truncadas e afirmações sem sentido. Você fica com uma triste impressão de ser dono de QI rebaixado. Agora não: seria a TV Brasil, ambicioso projeto do governo federal, que, mesmo tendo sede em Brasília, baseia-se ainda na boa experiência da antiga TVE, do Rio de Janeiro. E o propósito parecia bem definido – incluir  São José do Rio Pardo num circuito de reportagens e entrevistas relacionadas ao centenário da morte de Euclides da Cunha.

Fui à Casa Euclidiana na hora marcada e Marly me dá a notícia: eles estavam atrasados. Era melhor  aguardar novo chamado, assim que eles chegassem.

Quando retornei à Casa, uma hora depois, eles já estavam lá, providenciando tomadas e ângulos. Estranhei  aquele senhor de cabeça branca ali, de costas, conversando com uns rapazes. Então levei um agradável susto  e dei graças aos céus por eu ser bom fisionomista: ali estava Alberto Dines, jornalista dos mais respeitáveis, criador e responsável pelo mais crítico dos programas de análise do comportamento de nossos jornais e revistas – o Observatório da Imprensa.

Ele deve ter estranhado minha acolhida mais que calorosa, mas retribuiu de imediato com afabilidade. Criou-se entre nós uma empatia que  se tornaria mais evidente no decorrer das quase cinco horas que passaríamos juntos.

Ele perguntou-me se eu era do Rio – o que me surpreendeu e ao mesmo tempo me fez acreditar que na minha pronúncia não figura com destaque o tal erre  retroflexo, típico da oralidade do interior paulista.

E a conversa se espalhou por coisas do Rio de Janeiro que Dines muito ama e  que conheci quando ainda capital brasileira, dotada de uma aura de cosmopolitismo que deixava São Paulo como cidade perfeitamente provinciana. Hoje é o que se vê.  

Descobrimos, então,  que tínhamos muitos outros pontos de aproximação, desde a provecta idade. Somos do mesmo mês e do mesmo ano. Restava saber qual dos dois era o mais velho. Acabei ganhando (se é que isso é ganhar) por oito dias: sou de 11 e ele de 19 de fevereiro de 1932.

Tudo pronto para o início da gravação. Diretor do programa: Rafael Casé, neto de um dos pioneiros do rádio no Brasil – Adhemar Casé. Repórter: Lília Diniz, interessadíssima em registrar tudo a seu redor. Cinegrafista: Celso Ramalho, auxiliado por Alex Rodrigues.

Percebi a experiência jornalística de Dines em alguns detalhes  de muita importância – memória privilegiada (nada anotou o dia todo e não errou nenhum nome, nenhuma particularidade local), feelling  para saber o que perguntar e como perguntar, cultura humanística para aprofundar qualquer assunto, sincero interesse pelas respostas que lhe davam. Um entrevistador que sabe interrogar e gosta  de ouvir o entrevistado.

Ficou sabendo de meus livros porque viu alguns deles em exposição num mostruário da Casa. Disse ter particularmente gostado do título de um deles – Tratador de palavras,  no seu entendimento a síntese da tarefa do jornalista. Ofertei-lhe exemplares dos dois mais recentes: Vidro de aumento e Tempo ao tempo.

Em troca, ficou de enviar-me “seu único livro”, uma  biografia de Stefan Zweig, escritor judeu austríaco que morou bastante tempo em Petrópolis, onde acabou se matando com a mulher. Dines mostrou-se agradavelmente espantado quando eu lhe disse que aos vinte anos já havia lido três dos  livros do biografado: Brasil, país do futuro, Maria Antonieta e Uma consciência contra a violência. No dia seguinte à sua estada em São José do Rio Pardo, Dines iria a Petrópolis, onde cuida da instalação do Museu Stefan Zweig.

E assim, durante o bom tempo em que aparentemente cavaqueávamos a respeito de generalidades, como sua passagem pela Folha de S. Paulo e pelo Jornal do Brasil, Dines foi elaborando mentalmente  seu questionário para a entrevista que se iniciaria logo depois.

O prólogo dele ao nosso longo depoimento gravado (uns quarenta minutos)  deixou clara a boa impressão que ele teve da cidade, das pessoas e principalmente da  Casa  Euclidiana, por ele considerada modelar e muito didática na exposição de seu rico acervo. 

Nós dois, de pé, no salão principal da Casa, sob as luzes dos refletores num dia de incomum calor, conversamos com a possível  naturalidade sobre as razões da vinda de Euclides a São José, sua vida familiar e social na cidade, a elaboração de tantas páginas de Os Sertões, a Semana Euclidiana, a atualidade da influência de Euclides na vida cultural da cidade.

E ali, frente às câmeras, Alberto Dines, sem recorrer a anotação alguma, deu uma aula de respeito ao entrevistado e ao tema em questão.

Era preciso fazer uma pausa para almoço. Fomos todos à Stufa. Para sorte nossa e geral satisfação, era dia de comida árabe. O pessoal da TV Brasil, Marly e eu caímos com gosto naquelas especialidades todas, a um tempo simples e de esmerada elaboração. Dez minutos de silêncio quase total – a atenção de todos era com o prazer da refeição. Aí Dines fez o inesperado: telefonou à esposa, no Rio, para lhe descrever a cidade, a Casa, as pessoas, o cardápio. Percebia-se que sua intenção era provocar certa inveja à mulher. Ali estava uma das virtudes deste nosso Brasil: um brasileiro, descendente de judeus russos, telefonando de uma cantina italiana (propriedade de descendente de sírios) do interior de São Paulo para a esposa, brasileira de ascendência libanesa. Resultado: entre os dois ficou praticamente assentado que logo viriam juntos a São José – ele para complementar seu trabalho jornalístico; ela, para colher material destinado à publicação numa revista portuguesa de que é correspondente.

Explica-nos Alberto Dines que sua vinda a esta cidade faz parte de um projeto do Observatório da Imprensa que dê a seu telespectador uma visão  panorâmica de como Euclides da Cunha permanece vivo na memória do povo e nas preocupações dos estudiosos do Brasil em tantos aspectos, decorridos cem anos de sua morte.

Para São José do Rio Pardo, que espera com as comemorações do centenário  ficar em evidência nacional,  essa reportagem da TV Brasil é fator importante para atingir este objetivo. O programa deverá ir ao ar em abril, com data e horário que devem ter ampla divulgação. Além do mais, integrará o material que a TV Brasil repassará a dezenas de emissoras públicas espalhadas pelo País.

Se forem levados a bom termo os planos de ainda se lançar um concurso de nível nacional sobre o relacionamento de Euclides com São José do Rio Pardo e se forem confirmadas as gestões para que o conferencista oficial de 14 de agosto de 2009 seja o jornalista Paulo Markun, diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura de São Paulo, estarão confirmadas as bases que garantirão a esta nossa cidade ampla visibilidade neste ano do centenário de morte do grande escritor.

E fica mais uma vez a advertência que se nós, rio-pardenses, não realizarmos a nossa parte, outras cidades, de um modo ou outro ligadas a Euclides, farão a sua, com bastante competência.

 

 

14/03/2009
(emelauria@uol.com.br)

 

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