Simpático aniversário

 

-  Alô!

Do outro lado, a voz o chama pelo nome, com a certeza de não ter nenhuma obrigação de se identificar. Ele sente a familiaridade, mas por breve momento não sabe quem o chama. Até que seu computador interno (modelo antigo, em bom estado) lhe apresenta o resultado: na outra ponta do fio (que fio?) está sua mulher, sua “esposa”, como dizem sem razão algumas pessoas educadas.

- Oi!

- Oi. Estou aqui na livraria pra te comprar um presente. (Ai, ai, ai! Lá vem mais um fora de meu gosto.)

- Você já leu A Descoberta do Mundo? (Deve ser coisa braba, bem edificante.)

- A Descoberta do Outro, do Corção? Esse eu tenho.

- Do Mundo, da Clarice.

(Sabe que o certo é Clarisse, mas quem se atreve a mudar a grafia de alheio nome?)

- Deixa ver.

Não era bem ver. Sem  sair do lugar, repassou na mente os títulos disponíveis e lembrados. O Lustre, Perto do Coração Selvagem, Laços de Família, Água Viva – este autografado. Ah, e aquele da doméstica alagoana. Virou até filme premiado. Que mais?

- Tem ou não?

- Não. Acho que não. É romance?

- Aqui está que é uma coletânea de escritos pro Jornal do Brasil, de 67 a 73.

- Não, não tenho.

- Então vai esse. Parece coisa boa. É de 84. Tchau.

Gostaria de ter tido tempo de dizer alguma coisa de circunstância, mas a mulher estava mesmo com pressa.

*

Na mesa da biblioteca, o embrulho com papel de presente envolvendo um calhamaço de setecentas e tantas páginas. Na capa, o nome da autora, da obra, o triângulo barrado da Nova Fronteira e uma ilustração que lembra cena do Superman: alguém sobrevoando paisagem azul, com nuvenzinhas iluminadas por um sol nascente (ou poente?). No exato instante, esse alguém, de olhos fechados como quem conhece de cor os caminhos, aproxima-se da curva de um rio de planície.

Ao contrário do Superman (nos antigos gibis já se havia naturalizado  como Super-Homem, agora retoma a identidade original) a figura voadora  não ostentava nenhum símbolo no peito. Aquele S do criptoniano sempre lhe pareceu o máximo da cabotinice.  A figura voadora nada tinha no peito. Mostrava em visão lateral um seiozinho a descoberto, desses bem pequenos, realçados pela posição dos braços, esticados para trás, à feição de asas. Pela figuração horizontal da cabeleira da mulher voadora, ela devia estar a uns quinhentos por hora, iluminadíssima pela claridade solar que a apanhava como em superexposição fotográfica. Um legítimo vol d’oiseau, tal qual se escrevia nos postais de antanho que reproduziam fotos aéreas.

A dedicatória, um tanto quanto econômica, porém realista:

 “Para você, neste simpático aniversário. Felicidade. Abraços.”

- No meu 25.º ou 30.º aniversário, a dedicatória havia de ter sido bem outra, pensou ele, do alto de seus muitos anos de vida.

O choque ficou por conta daquele inesperado simpático. Que viria a ser um aniversário simpático? Chamar uma mulher de simpática, sabia, não passava de maneira delicada de confirmar a feiúra dela, compensando a falta do que um poeta classificou de “fundamental”, com uma coleção de virtudes e habilidades invisíveis. Aniversário simpático. Não seria um modo inconsciente de chamá-lo de velho, um bola-murcha a caminho da velhice mais declarada? Lá por dentro, sabia que não, porque o interior muda muito mais lento do que o exterior. Daí essas inevitáveis declarações de tantos, que se sentem sempre com vinte anos. Nem Rui Barbosa escapou dessa avaliação completamente subjetiva e algo tola.

Não pôde deixar de trazer à memória a pergunta de um companheiro de sauna, meio bronco, é verdade, que no calor seco de mil graus à sombra, lhe sapecou:

- O Sr. já deve estar beirando os setenta, né?

Passada a vontade de envolver a mãe do interrogador na conversa, resistiu:

- Eu pareço ter tudo isso?

-  É, meio gordo, quase careca, com  o resto nas laterais todo branco...

Simpático aniversário. Só mesmo sua mulher para adjetivar assim. E sem ligar para a etimologia: syn pathos, afinidade de sentimentos. Por esse ângulo, a mulher estava coberta de razão, embora não tivesse sido o caminho dela para chegar ao simpático. Pelo que conhecia dela – bem mais de trinta anos de convívio --,  a intenção se fundava na consolação. Como se lhe dissesse:

- Meu caro, não há por que se preocupar com o avançar dos anos. O tempo flui para todos, deixa marcas em todos, é inexorável  para com todos. Dê-se por muito feliz pelo que é, pelo que criou, pelo que transmitiu. Sua mente é lúcida, seu coração abriga ideais, seu corpo ainda lhe dá muito conforto. Tantos anos desfrutados e desfrutáveis, em paz consigo mesmo, em paz com os outros. Ser tolo ou ser sábio não se resume a questão de idade, depende de como encare as coisas. Tudo o aconselha a não competir com os muito jovens. Se possível, alie-se a eles e desfrute com isenção de espírito a bela visão que eles formam do mundo. Livre-se de aspirações superadas, do espírito de concorrência e das frustrações de quem já não pode.

A mulher não comporia este discurso assim de enfiada, nem usaria os termos que aqui emprego. Talvez resumisse tudo numa só frase:

- Assuma os anos com tudo que eles trazem!

É isso que ele pretende, se puder.

Se gostou da Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector? Outro dia ele me conta e eu espalho.

Até aqui, um texto de 1996, já publicado até em livro.

Conforme o esperado, o tempo fluiu, com todas as suas implicações, principalmente nascimentos e mortes. O que era mais de trinta parou nos cinquenta e um, os conselhos da mulher foram mais ou menos seguidos.

O marido continua aliado dos mais moços e lida relativamente bem com as intempéries inevitáveis. Está com oitenta  e três e sente a verdade embutida na pergunta com que um amigo da mesma idade o recebe sempre. Já não diz “como vai?”, mas “onde dói?”.

O companheiro de sauna, mestre em superavaliar a idade alheia, não resistiu a um infarto e se foi desta para melhor antes dos cinquenta, deixando viúva bonita e rica.

A Descoberta do Mundo, apesar de seu volume, pouco ou nada acrescenta ao valor literário de Clarice Lispector, uma escritora que detestava o efeito devastador de uma frase que um crítico desafeto lhe aplicou: “ Um estilo à procura de um assunto”.

Isso, aliás, serve para a maioria dos cronistas, cujos textos muito raramente resistem à chegada do dia seguinte.

O que se há de fazer?

11 de fevereiro de 2015

 

14/02/2015
emelauria@uol.com.br

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