Das faces da morte

 

 

Da face cruel

Imagine você , na tranquilidade de um sábado de manhã, abrir o computador e encontrar um e-mail com estes dizeres, retocada apenas a pontuação:

 Caríssimos amigos, estou neste momento dando um adeus, pois a partir de agora, 9:48, estou de partida para um lugar onde vocês não poderão ir, não agora... pois estou metendo uma bala na cabeça. Deixo um pedido de desculpas a quem maltratei e um abraço àqueles que me quiseram bem. Vou em busca de um lugar melhor que com certeza encontrarei. Adeus !!!

Isso me aconteceu no sábado, 7 de janeiro. Havia outros cinquenta destinatários do mesmo e-mail. Que fazer? Avisar quem? Impedir o quê?

Uma alternativa tranquilizadora pensar que aquele e-mail do Tadeu, Luís Tadeu Silvestre, não fosse passar de brincadeira, brincadeira de péssimo gosto, que bem mereceria um pito daqueles.

Lembro-me dele aqui em casa, trazido por Marina, então sua professora numa série inicial da Escola Estadual Dr. Cândido Rodrigues. Marina certamente gostava dele, apesar de algumas peraltices próprias da idade – tinha ele talvez uns oito anos.

O tempo passou, perdemos contato, até nos encontrarmos de novo com ele, então um solícito garçom em restaurante da cidade.

Depois, muito depois, a visita cerimoniosa e um mundo de histórias para contar: Luís Tadeu Silvestre estava no Brasil a passeio, em férias de seu trabalho de motorista de ônibus e caminhões na Europa, mais frequentemente em Portugal.

Polido, boa figura, bem-falante. Como caminhoneiro tinha viajado pela Europa Ocidental (Portugal, Espanha, França, Alemanha, principalmente), prestando atenção a tudo, observando detalhes, certamente já com a ideia de um dia, longínquo ainda, colocar aquilo no papel, ilustrar com fotos de cada local visitado, escrever enfim um livro que contasse seus trabalhos, seus sofrimentos, suas vitórias. A vida de um afrodescendente brasileiro na Europa.

Pois não é que, no começo de dezembro de 2010, dou de novo com Tadeu, agora na sauna do Rio Pardo FC?

Muito conversamos naqueles ambientes acalorados, ele falando mais do que ouvindo, porque, afinal, quem havia deixado esta cidade, este País fora ele. Tinha novidades à beça.

E então me fez a revelação: estava com um texto pronto, cerca de oitenta e cinco laudas, além de rico material fotográfico suficiente para montar um alentado volume.

Formulou o pedido que não pude negar: que eu passasse um pente-fino no texto todo, acertando aqui e ali...

Dias depois, recebi pela internet o minucioso relato e as muitas dezenas de fotos ilustrativas.

Com as larguezas do tempo de aposentado, logo dei conta de minha tarefa, podando aqui e ali, arranjando isso ou aquilo, sugerindo algumas alternativas de textos, desde que nada ficasse mais parecido comigo do que com Luís Tadeu Silvestre.

Pelo que me disse por telefone, ele pareceu ter gostado das emendas que fiz, porque no fundo nada de essencial fora modificado. Além do mais, em qualquer tempo, ele poderia descartar minhas sugestões e reaproveitar a forma original.

Surpresa tive, ao final do texto, quando dei com suas duas homenagens: à sua mãe, viva e sã, e à falecida Marina, que segundo ele, introduziu-o no universo da escrita.

Não sou de desestimular ninguém, mas levei grande susto quando Tadeu me revelou a extensão de seu sonho: publicar o texto e todas as fotos coloridas disponíveis, numa tiragem inicial de cinco mil exemplares. Ele não deve ter gostado de minha cara de espanto, menos ainda da sugestão que lhe fiz: antes dessa dispendiosa aventura editorial, lançar uma edição bem mais restrita, que fizesse de seu livro uma boa memória dos seus dez anos de Europa, destinada em princípio a um repositório familiar, a um belo presente a amigos seus dos dois lados do Atlântico...

Pelo que senti, Tadeu – curioso e teimoso, como se classificava, não seguiria minha sugestão e tentaria partir desde logo para a grande edição, a menos que os custos de tudo o reconduzissem a uma realidade mais simples.

Nada disso deve ter acontecido. Cultivando disfarçadamente seus males secretos, Tadeu sucumbiu às durezas da vida  e saiu dela pela porta do fundo. Matou-se em inesperado lugar: a capela da  Santa Casa. Isso no sábado de manhã, 7 de janeiro de 2012.

Paz à sua atormentada alma.

 

 

Da face gentil

 

Não houve  ocasião em que, encontrando-o à  sua porta, eu não batesse rápido papinho com  Sérgio Gumercindo, meu colega de grupo escolar, de vereança e principalmente de vizinhança. Nós dois éramos os mais antigos moradores da Várzea, coisa de mais de setenta anos.

Já escrevi algumas vezes sobre ele, a nossa amizade, as boas recordações que cultivávamos ao longo de tanto tempo. Escrevi até sobre a missa comemorativa de suas bodas de ouro com Nazareth Cerávolo. Ele usou o mesmo terno e o mesmo sapato do casamento! De causar inveja seu imutável manequim.

Lembro-me de sua primitiva casa, de pau a pique, em que seu pai tinha açougue. Era no mesmo lugar da atual. É de minha autoria o projeto de lei que deu à pequena rua que vai até a ponte sobre o córrego, o nome de Della Torre, em homenagem à grande família  que ali teve sua origem há bem mais de um século.

 Do Cândido Rodrigues, ficou-me nítida na mente a sua habilidade em fazer vistosas barrigueiras de barbantes coloridos. Nas aulas de Trabalhos Manuais, D. Laudelina nos dava tarefas para amansar as mãos, melhorar a letra. Sérgio, desde sempre metido com cavalos e vacas, unia o útil ao agradável e fazia daquelas peças que seguram o arreio na barriga dos animais.

Na Câmara Municipal, ele sempre foi presente e atento, desempenhando o melhor que pôde o seu mandato obtido por expressiva votação decorrente de sua enorme popularidade  como apresentador de programas de música sertaneja na Rádio Difusora, função que exerceu por mais de cinquenta anos.

Não é minha intenção principal falar de Sérgio Gumercindo e suas muitas qualidades e atividades. Outros o farão melhor, tenho certeza.

 Quero falar de seu velório e de seu sepultamento. Nunca vi coisa igual, seja pela originalidade, seja pela espontaneidade, seja pelo que representou de um estilo de vida em rápido processo de desaparecimento.

Velado na igreja dos Reis Magos, que ele ajudou a construir e manter, foi visitado por milhares de pessoas, não necessariamente tristes, mesmo porque sua vida de oitenta e tantos anos fora muito bem vivida. No domingo, ao cair da tarde, lá estava para sua homenagem original uma Companhia de Reis, tocando e representando temas de fundo religioso, certamente passados de uns para outros por tradição oral. Pelo andar das modificações que vemos por aí, essas funções logo mais terão desaparecido, sem deixar rastro.

Na segunda de manhã, dia 9 de janeiro, a saída do féretro foi também inesperada: toque de berrante pelo filho Márcio Edgar, dentro do templo. Lá fora, um carro de oito bois, carreiro com aguilhão e tudo,  escoltado por muitos cavaleiros. Disseram-me que havia muita gente nas calçadas, vendo o cortejo fúnebre passar.

Chegando ao cemitério, nova aglomeração de cavaleiros junto ao carro de bois, novo toque de berrante por outra pessoa, e uma geral comoção. Um homem bom e prestante estava sendo homenageado por parentes, amigos, admiradores das mais diferentes idades e atividades.

Enfim, morte natural de pessoa velha, que sofreu desgastes, padeceu dores e teve seus dias e noites assistidos pela esposa, pela filha, pelos filhos, por demais parentes e amigos chegados. Um digno  final de vida bem trabalhada, reconhecida pela família e pela comunidade.

Uma face gentil da morte.

 

14/01/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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