JK e os anos dourados

 

             Muitas pessoas melhoram muito, depois de mortas. Algumas sofrem poderoso processo de revisão histórica que pode, se tiverem corretos promotores, levá-las até à glória dos altares. Deve ser por isso que os verdadeiros casos de canonização às vezes levam séculos, como está sendo o do padre José de Anchieta, quando muito considerado beato, uma espécie de santo de segunda classe.

            As minisséries de fundo histórico da rede Globo correm esse permanente risco, porque logo às primeiras cenas o espectador atento fica sabendo quem será considerado do bem e quem será tratado como representante do mal.

            Deve haver ainda quem se lembre de “Desejo”, aquela novelinha muito caprichada que teve por objetivo explicar benevolamente a complicada vida sentimental de Ana de Assis, a Saninha, que, casada com Euclides da Cunha, deu causa a uma sangrenta tragédia familiar. As evidências da boa vontade global  para com Saninha e suas atitudes se revelaram desde logo com a escolha da própria atriz que a representaria – nada menos que Vera Fischer, até hoje, cinqüentona, capaz de causar frisson entre os homens com sua simples presença. Imagine-se com quinze anos menos... A Saninha de carne e osso não era nada bonita. Dilermando de Assis, na verdade um jovem louro e esbelto,  também foi caracterizado por um ator de belo porte, Guilherme Fontes. Malgrado as diferenças de idades das personagens – Saninha teria trinta e poucos e Dilermando menos de vinte--, os dois artistas formavam um  par que atraía para si as simpatias do público, que desde logo torceu para o sucesso do caso amoroso de ambos. Não que Euclides da Cunha tivesse sido representado por ator sem presença, no caso Tarcísio Meira. É que desde logo ficou assentado pela novelista Glória Perez, com base em fontes bibliográficas tendenciosas,  que Euclides seria mostrado como um sujeito meio desligado da família, muito mais preocupado com o Brasil do que com sua própria mulher... O resultado disso foi que precisou haver a oportuna intervenção do representante da família de Euclides, no caso Joel Bicalho Tostes, casado com uma de suas netas, sem cujo poder de persuasão junto à novelista teria sido passado ao público um juízo ainda menos lisonjeiro sobre o escritor. A maior luta de Joel foi evitar que a minissérie encampasse a fantasiosa versão de que Euclides teria, por vias indiretas, levado à morte o recém-nascido Mauro, filho de Saninha e Dilermando. Apesar desse esforço de Joel, a imagem de Euclides não saiu engrandecida ou valorizada, na opinião popular. Colhi, à época, esse ruim conceito através de fontes próprias de consulta – alunos do curso de Letras originários de uma dezena de cidades.

            Agora é chegada a vez da santificação de Juscelino Kubitscheck de Oliveira, um raro presidente que conseguiu cumprir integralmente seu mandato e passar a faixa presidencial a seu sucessor – Jânio Quadros, o primeiro a tomar posse em Brasília, em 1961.

 JK, o construtor de Brasília, o criador da indústria automobilística “nacional”, o construtor  de rodovias em detrimento das ferrovias, o impulsionador do progresso do Brasil com o slogan de difícil comprovação -  cinqüenta anos em cinco... Também vítima de muitas injustiças, de muitas piadas, de muitas observações ferinas. Uma delas dizia que ele era analfabeto, imoral e anormal. Alguém lembra por quê? Eu lembro, mas  não posso reproduzir neste espaço os falaciosos argumentos...

            Por aí já vê meu paciencioso leitor que não sou juscelinista de carteirinha. Muito ao contrário, não votei nele em outubro de 1955, assim como não me interessei pela cerimônia de sua posse, ocorrida no Rio a 31 de janeiro de 1956, há meio século, portanto, e certamente a razão mais forte do lançamento da minissérie. Lembro-me de  que eu  estava num curso de professores de Português patrocinado pelo MEC, em Nova Friburgo, RJ,  e que me espantei com o interesse de um dos nossos professores, o querido Rocha Lima, pelo discurso de posse de JK, transmitido pelo rádio. Rocha Lima acabou me contando, meio em segredo, que tinha sido o redator daquele texto... Um legítimo e erudito ghost writer presidencial! Naqueles recuados tempos eu ainda acreditava que ninguém admitisse externar como suas as idéias formuladas por outros...

            Mas conheci de perto o poder encantatório de Juscelino quando de sua vinda a São José do Rio Pardo, anos depois, como senador e declarado candidato a retornar ao Planalto  pelo voto popular.. O fato é que JK mereceu consagradora recepção dos políticos e do povo. A Câmara Municipal, ainda funcionando no prédio onde hoje está o Museu Rio-Pardense, acolheu-o com todas as pompas. Numa rara prova de sabedoria, os vereadores locais confiaram a um antijuscelinista esclarecido a honrosa tarefa de saudar o visitante. Mas era um antijuscelinista fino, educado, civilizado – Itagiba d’Ávila Ribeiro, da UDN (União Democrática Nacional), o partido que se opunha ao PSD (Partido Social-Democrático), de JK. Foi um momento de superior convívio entre adversários, não inimigos. Itagiba, brilhante como sempre, encantou a todos, inclusive a Juscelino, que lhe agradeceu muito o notável discurso de recepção.

            Gostei  do que vi na primeira semana da minissérie. O capítulo inicial, com uma hora de duração sem intervalos e num horário adequado, foi feito mesmo para segurar o público. Os desdobramentos seguintes também foram agradáveis, tudo na linha maniqueísta segundo a qual os bons ficam muito melhores e os maus muito piores. Arranjaram uma Sarah Lemos bem mais bela do que a verdadeira, assim como logo entrará em cena uma sensível artista que fará um papel que só a televisão brasileira pôde conceber: a amante-síntese, ou seja, uma personagem fictícia que representará as muitas mulheres que passaram pela vida de JK. Leio não sei onde que isso tinha sido exigência da família de Juscelino – nada de ficar pondo em evidência os diversos alvos do dom-juanismo do simpático pé-de-valsa  Nonô...

            Da segunda semana em diante, nem sei se conseguirei assistir ao programa, porque com a entrada de mais um execrável Big Brother Brasil, os horários ficam bagunçados. É provável que a novelinha acabe entrando lá pela meia-noite.

            Não será por causa deste JK  que cessarão as polêmicas em torno  do legado de Juscelino. O historiador Francisco de Oliveira acha que a população brasileira, ressabiada com a falta de crescimento do País, o vê hoje como o símbolo do desenvolvimento possível. Outro estudioso, Francisco Alambert, crê que JK se transformou numa metáfora de poder a que todos os presidentes do Brasil pós-redemocratização quiseram se agarrar, de Collor a Lula, passando por Fernando Henrique Cardoso. Francisco de Oliveira vai fundo: “O povo o elogia, mas isso é um anacronismo, pois ele foi um estadista burguês que não tinha política social nenhuma”. O jornalista Flávio Tavares não perdoa: “Após Juscelino, não sabíamos se o Brasil se submetera a uma cirurgia plástica ou se sofrera um acidente, mudando de rosto. A corrupção institucionalizada surgiu e não nos abandonou jamais”.

            Apesar de opiniões tão negativas, a minissérie com certeza reforçará a boa imagem pública do “presidente bossa nova”, título cunhado pelo satírico Juca Chaves.

            De tudo ficará uma associação nem sempre verdadeira entre a fase histórica de Juscelino e uma espécie de segunda revolução modernista no Brasil, dada a exuberância e o arrojo da produção cultural do Brasil entre 1956 e 1961. Bastaria lembrar o lançamento, em 56, de Grande Sertão: Veredas, o clássico do também médico e mineiro Guimarães Rosa; o surgimento do “Plano Piloto para a Poesia Concreta”, de Haroldo e Augusto de Campos; o concretismo de Décio Pignatari; o surgimento do filme “Rio, 40 Graus”, de Nélson Pereira dos Santos, precursor do “cinema novo”; a ratificação da bossa nova com o LP “Chega de Saudade”, em que João Gilberto deu interpretação definitiva à canção-título de Tom Jobim e Vinicius de Morais...

            Esses eventos de importância permanente na arte nacional não são o fruto da política cultural juscelianiana, mas ocorreram no tempo dela e fazem com que a era de JK e os anos dourados sejam indissoluvelmente associados, com justiça ou não.

 Na verdade, foram mesmo anos dourados, não importa se por causa de JK ou se apesar de JK...

 

14/01/2006
(emelauria@uol.com.br)

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