UM ASSUNTO QUASE HUMILHANTE (I)

 

             Quem vive constantemente a situação de  precisar escrever correto, sabe que nada é mais criticado num texto alheio do que sua ortografia. Ai daquele que, por descuido ou desconhecimento, perpetra batatadas ortográficas! O infeliz fica  estigmatizado, como se tivesse cometido o mais grave dos pecados lingüísticos.

            Felizmente, alguém introduziu nos computadores os chamados corretores ortográficos, que resolvem quase  todas as questões de se grafarem com um mínimo de limpeza  palavras do vocabulário comum. Mas vai até a serventia desses corretores. Problemas bem mais significativos na técnica de escrever, como fazer a concordância do verbo com o sujeito, do adjetivo com o substantivo, ou ainda casos mais complicados de regência, de colocação das palavras  – a isso o corretor nãosoluções de boa qualidade. Quando uma frase sua aparece grifada em verde, é sinal de que alguém não gostou dela e até lhe oferece de graça um palpite (basta clicar o lado direito do mouse), nem sempre digno de acatamento.

 

          Também o corretor não se manifesta quando se trata do uso ou do não-uso do acento grave (`), indicador da crase.

 

 Pelas vigentes regras de ortografia, desde 1971 se emprega tal acento (`) para marcar na escrita a fusão de dois sons, quase sempre a preposição a  com o artigo feminino a. Ao invés de escrever-se Vou a a cidade, grafa-se Vou à cidade, sem que precise haver perceptível mudança de pronúncia entre  aà.

 

Fora desse emprego muito comum do acento de crase, ele atualmente tem cabimento quando a preposição a se funde com os demonstrativos aquele(s), aquela(s), aquilo. Assim, escreve-se:

 Refiro-me àquele rapaz; Esta atitude é contrária àquilo que pensamos; Jamais voltarei àquela casa.

 

Apesar de tudo poder parecer muito simples, na verdade o correto emprego do sinal de crase se apresenta para a grande maioria das pessoas como uma das mais insidiosas armadilhas da língua portuguesa, a ponto de o  escritor e humorista Millôr Fernandes haver cunhado frase muito difundida: “A crase não foi inventada para humilhar ninguém. Mas que humilha, isso humilha”.

 

O que se vem errando no emprego do acento grave chama a atenção e até estimula a divulgar um conselho impensável em outros tempos: se você estiver na dúvida entre crasear e não crasear, não craseie. O efeito é menos comprometedor; além do mais, você, não craseando, pode cair num dos não poucos casos de emprego facultativo da crase, ou seja, você não terá como errar. Dou alguns exemplos de frases igualmente certas, embora algumas sejam de uso antiquado:

 

Foi à Itália ou Foi a Itália

Entregou a carta à Maria ou a Maria

Voltarei à minha terra ou a minha terra.

 

Explicando:

 

1.ª frase:

O uso do artigo antes de nomes de países e continentes é facultativo. Claro, a tendência geral, hoje, é empregá-lo, mas sempre será certo escrever-se:

 

Cartas de Inglaterra (nome de livros de Eça de Queirós e de Rui Barbosa); Meter lanças em África (provérbio português); O atual rei de Espanha; Penha de França (nome de bairro da cidade de São Paulo); Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda ( do padre Vieira).

 

2.ª frase:

Antes de nomes próprios femininos é facultativo o emprego do artigo a e com isso se torna facultativo o uso da crase. Machado de Assis, no poema de saudade escrito em memória de sua falecida esposa, colocou o título A Carolina. Teria sido possível a ele escrever À Carolina, mas o efeito estilístico seria diferente: o uso da crase antes de nomes femininos indica intimidade ou notoriedade. Machado não quis abrir a porta de sua intimidade ao seu leitor, especialmente porque estava falando de sua vida conjugal com aquela “que num recanto pôs um mundo inteiro”.

 

3.ª frase:

Também fica à vontade o uso do artigo antes de possessivos. Almeida Garrett tem um belo livro Viagens na Minha Terra (poderia ser em). Afonso Celso escreveu Por que Me Ufano de Meu País (poderia ser do).

 

Conselho fundamental:

NÃO CRASEIE ANTES DE VERBOS E ANTES DE SUBSTANTIVOS MASCULINOS.

 

Assim estará evitando os mais comuns dos erros de hoje no caso de emprego da crase. Os exemplos que darei abaixo estão todos certos, apesar dos muitos empregos em sentido contrário encontráveis em paredes, tabuletas, cartazes, volantes de publicidade:

 

Fiz um favor a ele

o recado a Paulo

Preços a partir de dez reais

Ir a São Paulo

Viagem a Pernambuco

Funcionamento de 2.ª a 6.ª-feira

Refeições a qualquer hora

Escrever a lápis

Acender uma vela a Nossa Senhora

Ação de graças a Nosso Senhor

Crianças de 8 a 12 anos

Isso interessa a todos

Aprender a ler

Não perdoar a ninguém

Começar a trabalhar cedo

Proibido a menores de 14 anos...

 

Nem tudo é lógico no emprego da crase. Muitas vezes o acento ajuda a dar clareza a certas frases, como:

 

Matar o inimigo à fome

Fechar a porta à chave

À medida que o tempo passa

Andar à toa

Fazer a barba à navalha...

 

Observação final:

Este artigo foi escrito a pedido de algumas pessoas. Se alguém mais quiser esclarecimentos sobre pontos específicos do assunto, estou à disposição nesta coluna.

 

 

13/11/2004
(emelauria@uol.com.br)

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