Revendo o grande sertão

 

Não estava nos meus planos enveredar pelo grande sertão na semana pré-eleitoral. E, no entanto, fiz a longa viagem, retornando ao mundo concreto ao fim da noite de domingo, 7 de outubro. Com isso, fiquei longe de tanta barulheira, de tanto palavrório desperdiçado por aí.

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Tenho ainda os olhos cheios das belas paisagens, os ouvidos tomados pela rude prosa cadenciada de jagunços e cavaleiros, o coração povoado de poesia, drama, encantos.

Explico-me:  tudo nasceu de uma vaga promessa de José Antônio Fernandes, ex-aluno meu no milênio passado, de emprestar-me o DVD da minissérie Grande sertão: veredas, baseada no pesado escrito de João Guimarães Rosa.

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Li o livro logo depois de sua publicação, lá por 1960. Reli-o parcelado ao longo dos tempos, ora por necessidade de apresentá-lo a alunos de Letras, ora para escrever alguma coisa sobre o seu autor, dos mais estudados nos anos setenta e oitenta e depois um tanto esquecido.

Foi assim sem  maior expectativa que aguardei o prometido empréstimo. O que não esperava era a extensão da obra televisiva adaptada por Walter George Durst, musicada por Júlio Medaglia,  dirigida por Walter Avancini para a Rede Globo em 1985 e posta no formato de DVD em 2009: quatorze horas e quatro minutos.

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Todos os dias da primeira semana de outubro, com meus horários folgados de aposentado, fui-me envolvendo com o jagunço Riobaldo, com o enigmático Reinaldo/Diadorim, com as estripulias  todas ocorridas nas gerais, mítica região do norte de Minas que Guimarães Rosa  tomou para cenário de seu único romance, épico de umas seiscentas páginas, sem divisões em capítulos.

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A dificuldade inicial foi aceitar a ficção de Bruna Lombardi, tão delicada, tão feminina, tão atraente, interpretar Reinaldo, muito homem, lutador valente, bravo e decidido.

Deu para entender, com isso, a triste sina de Riobaldo, bem levado em cena por Tony Ramos, já em 1985 ótimo ator. Nessa atração fatal de Riobaldo por Reinaldo está o nó dramático do livro. Como é que  Riobaldo, um sujeito machão e abrutalhado, poderia perdoar-se a  si mesmo  alimentar desejos carnais por um companheiro de armas? O mistério, para nós telespectadores já resolvido com a simples presença da belíssima Bruna, só  se esclarece para o enamorado depois da morte de Reinaldo/Diadorim, quando a perfeição de seu corpo de mulher se oferece à vista de Riobaldo. Ao fim, a comprovada vitória do instinto, a inapagável presença do odor di femina.

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Não acredito que a minissérie tenha em 1985 alcançado grande êxito popular, porque seu enredo é arrastado, sua linguagem fantasiosa,  seus personagens dados a longas cismas e reflexões sobre a vida e sobre a morte. Assunto para depois das dez da noite.

Também o livro Grande sertão: veredas, na opinião quase unânime da crítica um dos maiores não só do Brasil, não só da língua portuguesa, mas da literatura universal,  está longe de facilitar leituras superficiais ou de mero entretenimento.

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Contou-me Paulo Dantas, seu amigo pessoal, que para mergulhar na elaboração do grande livro,  Guimarães Rosa avisou à mulher que ficaria recluso na própria casa, não teria horários para nada, não queria ser interrompido em seu estado quase hipnótico. Assim foi durante meses e meses de insônias, jejuns, refeituras. Saiu de seu retiro com o livro recebido pronto e com a alma esvaziada.

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Na cinematografia universal (e por extensão na teledramaturgia) os grandes enredos são adaptados de grandes obras literárias. No Brasil, guardadas as distâncias, também isso vem acontecendo, com o aproveitamento dos mais notáveis textos da literatura nacional. Desconheço, contudo, alguma adaptação tão longa e tão fidedigna como esta de Grande sertão, em que as mesmas qualidades e as mesmas dificuldades de aceitação do livro estão presentes na versão televisiva. Entre essas qualidades/defeitos está a própria linguagem. Muitos consideram os livros de Guimarães Rosa ilegíveis, esotéricos. Ele é desses autores que exigem imaginação poética a quem os lê. No afã de exprimir  sensações e experiências muito pessoais, Rosa precisa submeter a língua portuguesa a toda sorte de malabarismos de construções, de neologismos morfológicos ou semânticos, de metáforas que renovam até as seculares frases feitas, os provérbios e ditos populares. Ele joga com o arcaico e com o moderno, o erudito e o popular, o nacional e o universal, o vulgar e o científico, o nobre e a gíria.

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Apreciei tudo isso nas quatorze horas e quatro minutos de muito encantamento. Não sei quantos de meus leitores compartilhariam deste meu prazer que exigiu concentração e alta disponibilidade pessoal.

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Seleciono algumas frases do livro, que pude reouvir na telenovela:

- Para ele (Reinaldo) olhei o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos.

- Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente.

- O pássaro que se separa do outro, vai voando adeus o tempo todo.

- O dia parava formoso, suando sol, mesmo o vento suspendido.

- No átimo, supri a claridade completa da ideia.

- Viver é muito perigoso.

- Nonada. Travessia. ( A primeira e a última palavras do longo texto.)

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Além de Bruna e Tony Ramos, outros grandes nomes do teatro e da TV brasileiros integram o elenco:  Tarcísio Meira (Hermógenes), Rubens de Falco (Joca Ramiro), Mário Lago ( narrador e o personagem Quelemém).

No episódio isolado de Maria Mutema, a mulher que matou o marido durante o sono, enchendo-lhe o ouvido de chumbo derretido, brilhante a atuação de Yoná Magalhães.

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E assim, mais para deleite meu do que para estimular leitores em potencial, digo que muito apreciei ter visto e ouvido esta  versão televisiva da triste história de Riobaldo, que narra a um presumível interlocutor a sua vida aventurosa pelos campos gerais, tendo como tônica o seu amor impossível por Diadorim e a sua ânsia do absoluto, a sua necessidade de explicar os sucessos e desencontros de uma existência que o coloca numa encruzilhado entre Deus e o Demo, entre o bem e o mal, entre o ser e o não ser.

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O livro tem algo de barroco e pôde ser comparado ao Ulisses, de James Joyce. Na verdade, obra perturbadora que desafia classificações, restaura a dignidade estilística da prosa e abre insuspeitados caminhos para o rompimento das convenções da linguagem e da própria Literatura. Sua passagem para a TV não o desmerece, felizmente.

 

13/10/2012
emelauria@uol.com.br)

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