Reforma da língua portuguesa?

Depois de esclarecer à simpática repórter da Gazeta do Rio Pardo que o assunto da hora não tratava de nenhuma reforma da língua portuguesa, mas da revisão de alguns princípios ortográficos e de acentuação gráfica secundários, eu só poderia dizer que minha posição em face daquilo tudo era de indiferença, tal a desimportância e timidez das modificações propostas.

Pena que minha frase central (segundo a qual pouco mais de um por cento das palavras do idioma seria atingido pela tal reforma) tenha saído com uma troca substancial: ao invés de palavras, saiu população – o que tornou meu pensamento quando menos surrealista. Nem posso imaginar como pouco mais de um por cento da população coubesse num caso de grafia ou de acentuação...

Pela etimologia do vocábulo ortografia, só deveria haver um modo de se escreverem as palavras, porque ortografia quer dizer exatamente escrita correta. Não é isso, porém, que tem vivido a língua portuguesa desde quando se tentou sistematizar o assunto, isso há  já mais de trezentos anos. A causa de todas as divergências sempre esteve na preferência por um dos dois caminhos ortográficos possíveis: a predominância da fonética ou a predominância da etimologia.

Nos textos da língua portuguesa da  chamada fase arcaica (desde os primeiros documentos do século XII até a publicação de Os Lusíadas, em 1572) é clara a tendência de se estabelecer uma ortografia fonética, ou seja, a grafia devia reproduzir o mais fielmente possível  o som dos vocábulos. O mesmo termo admitia várias formas, porque se escrevia não para a vista, mas para o ouvido.

O que hoje escrevemos homem tem, segundo J. J. Nunes em sua Crestomatia Arcaica, estas variantes: home, homee,  ome, omee e homẽ, homẽe, omẽ, omẽe....

Como é sabido, grande parte do vocabulário português origina-se do latim vulgar, língua muito mais falada do que escrita. Isso quer dizer que se tivesse ocorrido a evolução natural dos vocábulos através dos tempos, sem dúvida a  grafia das nossas palavras seguiria essa tendência fonética e se acabaria, pelo uso,  optando por uma das possíveis formas de escrever determinado vocábulo. Teriam desaparecido, assim naturalmente, as terríveis dúvidas entre o emprego do s e do z, dos  ss e do ç, do j e do g, do ch e do x que só complexos estudos etimológicos explicam, quando explicam .

Há cerca de duzentos anos, a língua  italiana seguiu essa diretiva fonética, a ponto de eliminar o h inicial (menos em quatro formas do verbo avere), o j e o x. Vejam alguns termos italianos: oggi (hoje), ospedale (hospital), massimo (máximo), Giorgio (Jorge), Gesù (Jesus), espedizione (expedição)...

Já a língua espanhola optou claramente pelo respeito à origem dos vocábulos, dando à sua ortografia uma feição histórico-científica que o português não alcançou. Muitas vezes se tem de recorrer à grafia espanhola para se entender a portuguesa. É o caso de soçobrar, em espanhol sozobrar. A transformação do z intervocálico em c ou em  ç é princípio assentado.

O fato histórico-cultural que mais contribuiu para o abandono dessa linha de evolução gráfica em obediência à fonética foi o Renascimento, com a retomada dos estudos do latim em seu aspecto clássico. Caiu-se num longo período chamado pseudo-etimológico da história de nossa ortografia, porque seus adeptos quiseram afeiçoar as palavras portuguesas ao aspecto que teriam tido em latim, não levando em conta nem as modificações de pronúncia que já haviam acontecido com muitas delas. Camões, por exemplo, escreve dino, benino, malino. Os eruditos voltaram a escrever digno, benigno, maligno, não para o g ser pronunciado, mas para amoldarem os termos à escrita latina dignus, benignus, malignus. Resultado: as formas usadas por Camões não resistiram à pressão dos eruditos e acabaram arcaizando-se.

Não são poucos os disparates gráficos que muitos autores portugueses e brasileiros do século XIX, principalmente, cometeram à conta de escrever de acordo com a etimologia. São as grafias etimologicamente fantasiosas, que não resistem a um exame acurado. É o caso de Thiago, em que nada justifica o h. Do latim Iacobus originou-se o nome próprio Iago, como bem aparece em Otelo, de Shakespeare, nome do personagem invejoso. Iago, nome do apóstolo, portanto Santo Iago. Daí a deturpação: Sant’Iago, que virou São Tiago com a migração do t...  De maneira alguma, portanto, cabe um h no simpático nome.

O grande poeta simbolista Cruz e Sousa não admitia escrever lírio (do latim lilliu) e insistia na forma lyrio, com o forte argumento de que o y lembrava muito mais o formato da flor...

Euclides da Cunha, que aderiu a uma ortografia  de base fonética, a ponto de haver grafado À Marjem  da História ( título de seu último livro),  confessa em carta ter dificuldade em escrever quilometro, porque a forma kilometro lhe lembra um  homem caminhando com enérgicas passadas...

Apesar de tantos percalços, a etimologia dominou a orthographia portuguesa até o começo do século XX. Ainda hoje o inglês e o francês mantêm vigente o sistema etimológico greco-latino, e nada indica que venha a ocorrer nele alguma modificação substancial. Isso apesar de polpudo prêmio que o autor teatral inglês George Bernard Shaw prometeu há quase cem anos a quem conseguisse simplificar o modo de escrever as palavras na sua língua. Daí se conservarem tanto no inglês quanto no francês correspondentes formas que já vigoraram no português até o começo do século XX: schizophrenia (esquizofrenia); phosphoro (fósforo); rhythmo (ritmo); sciencia  (ciência); psychologia (psicologia); chimica  (química), physica (física), dyphthongo (ditongo)... E ainda dizem que escrever em inglês é mais fácil do que em português... Pode ser mais prático em sua forma simplificadíssima, oralizante,  de largo uso internacional – isso sim. Um dos programas da TV americana de maior sucesso pergunta aos candidatos como se soletra tal ou qual palavra e distribui generosos prêmios aos especializados acertadores. Não é por acaso que se descobriu há alguns dias em Brasília um carimbo oficial em que estava escrito Congreço Nacional... Como diria Guimarães Rosa, escrever é muito perigoso!

A partir de 1904, quando Gonçalves Viana publicou seu fundamental estudo denominado A Ortografia Nacional, portugueses e brasileiros vêm sentando-se à mesa de negociações ortográficas   sem nunca chegar a acordos cumpríveis.

Hoje, Portugal e suas antigas colônias (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe) adotam (ou melhor: adoptam) a chamada Ortografia de 1945, que aboliu o uso do trema, eliminou o acento diferencial em milhares de palavras, mantém algumas letras mudas como em objecto, optimismo, secção, excepção... Manda, por amor à clareza de pronúncia, escrever comummente, circum-navegação, connosco. Acentua género, quinquénio, anónimo, António... Escreve com maiúsculas os nomes de meses...

O Brasil segue a chamada Ortografia de 1943, com as modificações introduzidas em 1971, que eliminaram milhares de desnecessários acentos diferenciais (êle, acôrdo, agôsto) e secundários (genèricamente, cortêsmente, pèzinho, pêzinho). O acento grave (`) só tem uso  para indicar o   fenômeno da crase, fusão de dois sons: à(s), àquele(s), àquilo...

A ortografia vigente em Portugal é, quem sabe, mais científica, mais de acordo com a visão internacional da questão, pois evita incoerências como estas, vigentes no Brasil: escrevemos caráter (lá é carácter), mas no plural usamos caracteres (deveria ser por lógica carateres).  Preferimos escrever exceção (lá é excepção), mas não dizemos nem escrevemos excecional, preferindo manter um p etimológico – excepcional...

Perto da magnitude das diferenças ortográficas que separam, talvez em caráter definitivo, as maneiras brasileira e portuguesa/africana de escrever a mesma língua, parece muito difícil que se chegue a um entendimento realmente proveitoso na questão.

Nem por isso, porém, se pode falar que se está cogitando de uma reforma da língua portuguesa. A estrutura de um idioma repousa em sua sintaxe, em sua regência nominal e verbal, na colocação das palavras na frase, na concordância nominal e verbal.

Mesmo que o modo de falar e de escrever aqui no Brasil, em Portugal e em outros países lusófonos apresente crescentes divergências e variações, nem por isso se poderá pensar, no momento, que estamos falando a língua brasileira. Pelos estudos específicos da questão, sabe-se que não é pela pronúncia, pelo vocabulário, pela grafia que um dialeto se erige na categoria de língua autônoma. Enquanto portugueses, brasileiros e falantes do português africano conjugarem de  igual modo os verbos, fizerem pelas mesmas regras os femininos e os plurais, usarem as mesmas palavras gramaticais (artigos, pronomes, preposições, advérbios), estarão todos expressando-se na mesma língua – o português, em diferentes níveis, em diferentes registros, em diferentes falares. É o que Celso Cunha definiu como o ideal de nossa língua: a unidade na variedade.

E não há a menor dúvida de que é em sua feição brasileira que a língua portuguesa se coloca entre as mais faladas no mundo.

13/10/2007
(emelauria@uol.com.br)

 

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