Faxina, aponta o dedo
Não, nada de premonições, nem de interpretações complicadas. Os fatos se desenrolaram com uma beleza natural e são dignos de figurar entre as boas histórias da família. Famílias, sabe-se, têm algumas histórias péssimas, se não de todo incontáveis, bem que merecedoras de justo esquecimento. Esta não, é uma história verídica, com seu tanto de poesia e de inefável. Prometi ao meu tio protagonista dela que a passaria a meu modo para o papel, para a letra de imprensa. Pode não ser interessantíssima (casos sem desfecho violento ou triste não andam comovendo as pessoas), mas tem lá sua importância e simbologia para alguns ao menos, desses que gostam de refletir acerca das imprevisibilidades que marcam a vida humana. Quando meu tio Marcello Bertocco (faz questão dos ll e dos cc) cursava o nosso Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues – isso já faz tempo à beça –, um dia, frente ao mapa do estado de São Paulo, ele fechou os olhos, pôs o dedo indicador a caminhar sem rumo pelo papel, até que estacionou em dado lugar. Abriu os olhos e leu o que o acaso apontava: Faxina, cidade perdida pelos lados do sul, quase divisa com o Paraná. - Um dia, vou morar em Faxina – pensou com determinação. A idéia sem a mínima razão de morar em Faxina se misturou com outros tantos desejos, com tantas outras aspirações que se formulam exatamente para constituir a provisão de sonhos de cada um, sem mais compromissos com a concretização. Morar em Faxina era mais inalcançável do que morar em São Paulo, molhar os pés na água do mar, embora mais realizável do que escalar os Andes, visitar a Pérsia. Depois dos anos de escola primária, a dedicação dura ao serviço: buscar o cavalo no pasto, trabalhar com o pai no armazém, matar porco, fazer lingüiça, mascatear por sítios e fazendas. E tome tempo passando. Namoro e casamento. Nascimentos e mortes na família. Até que chegou a impensável hora do adeus ao Buracão, à casa onde nasceram os filhos, à velha casa dos pais, aos hábitos, aos amigos. Vida áspera em São Paulo, empregos humildes, como o da portaria do hotel, o da fábrica de brinquedos. O árduo sustento da casa e da vocação dos filhos. Primeiro a de Plínio, o mais velho, antes caçador de passarinhos, pontaria certeira no estilingue, que queria porque queria ser médico. Sacrifícios que deram certo. A filha Marly acaba acertando com Ulysses, também pobre, lutador, estudante de Medicina. Casamento, despedidas, enfrentar vida nova em Itapeva, cidade velha numa região então pobre. E o tempo correndo. Um dia, o convite que tem muito de reconhecimento: - Seu Marcello (propõe Ulysses), eu e Marly queremos que o Sr. e dona Amália venham morar em Itapeva, perto da gente. Estou pensando em alugar já uma casa para vocês. Não era casa alugada. Era uma boa casa comprada, tal a certeza de que o convite de tanto empenho seria aceito pelo casal. Lá se foi para Itapeva meu tio Marcello com sua mulher Amália. Fizeram boas amizades, sempre amáveis, prestativos, simples. Meu tio se integra na vidinha de lá. Trabalha. Relaciona-se. Interessa-se pelas coisas da cidade, antiga de duzentos anos, rude catedral com larguíssimas paredes, ruas de pedras irregulares, passeios estreitos que em certos lugares dão espaço para uma só pessoa. Vem por acaso o detalhe, que o comove às lágrimas: não faz muito tempo que Itapeva deixou de lado o seu nome secular: Faxina! Itapeva da Faxina, por inteiro. O obscuro/claro desejo da infância estava concretizado. O menino sonhador do Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues morava na idealizada Faxina, tal qual o seu dedo aleatoriamente escolhera e seu espírito expressara em firme declaração de vontade. Um dia, na praça central de Itapeva, sem que ele soubesse, eu observava de longe meu tio Marcello, itapevense assumido, com seus muitos anos saudáveis, conversando numa roda de amigos. Com certeza ele contava um dos seus casos, que têm um jeito de verdade e quase sempre terminam com surpresa e risos. Quem sabe naquela manhã ele adaptava para personagens e cenários locais algumas passagens vividas aqui em São José do Rio Pardo? O fato é que seus companheiros o ouviram com atenção. Depois caíram na gargalhada, muitas cabeças dando sinais de sérias dúvidas. Em mim, ficou a clara impressão do bem-estar de meu tio, o que teve realizado um sonho muito alto. Ele estava bem ali, naquela cidade que sua intuição o fez misteriosamente escolher no mapa de São Paulo como sua terra definitiva, em momento de infantil devaneio numa sala de aula. ... Até aqui, um texto de 1996, já publicado em livro. Meu tio Marcello, na flor dos noventa e sete anos, continua firme na Faxina de seu sonho. A vida lhe deu de tudo: filhos, netos, bisnetos. Tirou-lhe recentemente Amália, a mulher com quem compartilhou isso tudo por muito mais de meio século. Ele, porém, é forte e tem muita fé. Sente muita dificuldade de andar, mas não recusa um bom vinho tinto, de vez em quando Ulysses e Marly são figuras de realce na vida da cidade. Plínio, depois de muitos e muitos anos dedicados à Medicina no bairro do Tatuapé, em São Paulo, também voltou para o interior, mais precisamente para Buri, ali ao lado de Itapeva. A última vez que meu tio Marcello esteve aqui na cidade foi em 1999, quando comemoramos com grande festa os noventa anos de minha mãe. Ela e ele eram então os sobreviventes de uma irmandade muito numerosa. Ele é raro exemplo de homem associativo, daqueles que escrevem carta e cobram resposta. Comunica-se com muitos sobrinhos, que pelo jeitão já sabem quando a correspondência veio do tio. Ele datilografa tudo com uma Remington ou Underwood dos anos trinta, tem uma linguagem muito própria, com uns torneios de frases que me parecem aprendidas no grupo escolar. Sim, porque no tempo dele e de minha mãe, ensinava-se a redigir cartas, com começo e fim quase sempre iguais, uns legítimos narizes-de-cera. Só o miolo variava, para contar as novidades. Uma vez, caí na besteira de lhe responder pela internet, encarregando seu filho caçula de entregar-lhe o texto, minutos depois de redigido. Ele me escreveu dizendo que não gostara da inovação. Queria que eu lhe respondesse, envelopasse, selasse e lhe mandasse pelo correio. E explica: - Não gosto de aceitar nem resposta tão rápida, nem resposta sem envelope. O mais gostoso de receber uma carta é esperá-la por vários dias, adivinhar de quem ela seja, examinar bem o remetente, abrir com cuidado o conteúdo e apreciar tudo com certa solenidade. Assim o tenho feito, embora ache trabalhoso ter de ir ao correio, comprar selo e depositar o envelope numa caixa, sabendo que só no final do dia ele vai ser encaminhado a seu destino, quando não no dia seguinte. (SEGUE) Mas não se brinca com a vontade de um homem de opinião como o meu tio Marcello.
06/09/2008
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