Um português muito inteligente

 
Saramago na praça de Azinhaga, sua terra natal.
    Foto: Márcio Lauria Filho

 

“Não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto” – descobriu José Saramago diante da representação tradicional da morte.

Se há defeito de que não se pode acusar o falecido romancista português José Saramago será o da mesmice. Que mente mais fértil! Só para exemplificar: em No ano da morte de Ricardo Reis, ele centra a ação na possibilidade de um heterônimo, ou seja, um outro nome do mesmo artista, não morrer junto com o ortônimo. A criatura sobrevivendo ao criador. Trocando em miúdos: Fernando Pessoa, por unanimidade considerado o maior  da poesia portuguesa depois de Camões, morreu em 1935, no dia 30 de novembro. Não satisfeito em escrever profundos poemas que assinou com seu próprio nome, Pessoa inventa outros poetas e outras biografias, entre eles Ricardo Reis. Pois Saramago imagina que esse tal Ricardo Reis, figura existente apenas na imaginação de Fernando, não morreu junto com seu criador e sobreviveu a ele, praticando todas as ações humanas, abismando-se em todos os pensamentos humanos, até que ele próprio começasse a perceber a putrefação de seu inexistente corpo...

Pior ainda em A Jangada de Pedra, em que, sem mais nem menos,  na fronteira entre a Espanha e a França, a terra começa a rachar, riachos se perdem de seus leitos, montanhas ruem, estradas desaparecem. Com o breve passar do tempo, a rachadura se completa e a Península Ibérica – Portugal e Espanha – se transforma numa jangada de pedra e começa a vagar à deriva pelo oceano Atlântico, numa simbologia fácil de entender, como se os dois países não pertencessem mesmo ao continente europeu e passassem a buscar seus próprios destinos. O fortalecimento   da  Comunidade Econômica Europeia será sempre um solene desmentido à ousada tese do romancista.

Saramago abocanhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1998, pela primeira e ainda única vez concedido a um autor de língua portuguesa, apesar de todos os esforços em favor de Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade. Abocanhar fica sempre bem empregado para quem leva, além da glória, da fama e do prestígio internacional, uma bela quantia em euros, a  câmbio desfavorável valendo hoje uns três milhões e quinhentos mil reais. Nada desprezível.

Prêmio Nobel (a  pronúncia é nobél ), original maneira que um engenheiro sueco, Alfred Nobel, encontrou, há mais de um século, de compensar os muitos estragos provocados por uma de suas invenções, a dinamite, utilíssima em tantas aplicações e todavia responsável por milhares e milhares de mortes, outro tanto de mutilações e ferimentos gravíssimos, seja na paz, seja nas guerras. Ele imaginou cinco categorias de premiações anuais para quem melhor trabalhasse em prol da paz, da literatura, da física, da química e da medicina.

Vi pessoas ostentando em público e em situações diversas ao menos dois dos mais famosos de seus livros: O Memorial do convento  e O Evangelho segundo Jesus Cristo.

Saramago nunca morreu de amores por nosso país, menos ainda pelo modo de aqui ser tratado o idioma lusíada.  Uma vez, foi assim questionado por um jornalista meio primário a respeito do sotaque português de sua fala. Sua resposta foi até ríspida: “Engano seu. Nós, os portugueses, somos os inventores, os  donos da língua e a pronunciamos como se deve. Vocês, brasileiros, é que têm sotaque e a deturpam pronunciando-a muito mal...”

O assunto do romance As intermitências da morte gira em torno dos caprichos da senhora cadavérica e carregadora do alfanje,  que, cansada de ser desprezada pela humanidade, resolve suspender suas atividades mortíferas. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que de início é saudado com o maior entusiasmo, logo se revela problema de graves consequências: idosos e doentes agonizam em seus leitos, sem poder passar desta para melhor. Os empresários do serviço funerário se veem brutalmente desprovidos de sua matéria-prima. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam crônica superlotação. Os negócios das companhias de seguros entram em crise. Os governantes não sabem o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque sem a morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há Igreja.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à esperável mortalidade de todos os cidadãos. Mas na sua intermitência vingativa, a Morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. E como se comportará o fictício país, já como que habituado ao caos da vida eterna?

Dizem que vale a pena conhecer a casa em que morreu, em Lanzarote (ilhas Canárias), transformada em museu. Há livros com dedicatórias de autores célebres, além de uma oliveira transplantada da cidade natal do escritor, uma particularidade bem típica de sua esquisitice – todos os relógios da casa-museu mostram a mesma hora, quatro, como lembrança do momento em que ele conheceu sua apaixonante esposa, Pilar del Río. Forte, não?

 

13/08/2016
emelauria@uol.com.br

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