DE PAZ E DE AMOR

 
Do alto do Santo Antônio.

 

Vi há algum tempo  o filme Pagamento, merecedor do conceito *** (bom, portanto), na avaliação de críticos até exigentes.  Tudo começou promissoramente bem, com muita ação, numa trama pra lá de complicada. De repente, a mudança: o mocinho assumiu ares de super-herói norte-americano e através dos mais inverossímeis raciocínios, consegue chegar a seu intento final, em última análise salvar os Estados Unidos das demoníacas intenções de seus crescentes inimigos. Foi então que me ocorreu a pergunta que tantos com certeza se fazem:

- Como é que um país como aquele, dotado de tanta tecnologia, de tantos cérebros privilegiadíssimos, vem sendo vencido e humilhado por povos pobres e internacionalmente inexpressivos na arte das guerras clássicas  como os coreanos, os vietnamitas,  os iraquianos?

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Eu mesmo tratei de me dar respostas. É que, desde a entrada dos americanos na 1.ª guerra mundial (1914-1918), suas vitórias foram quase sempre conquistadas através de bombardeios de saturação, aniquilamento de populações civis, uso e abuso da riqueza que sempre acabou significando mais armas, mais recursos materiais e humanos. Quando apanhados na casa dos adversários e submetidos a tantas formas de desgaste, como túneis e armadilhas, os soldados americanos morrem às centenas, aos milhares e não conseguem firmar  nenhuma espécie de ocupação pacífica. Ao contrário, é depois da vitória pela força do poderio bélico que começa a degringolada deles. Cidades inteiras de repente fogem ao controle dos invasores, impotentes ante  as muitas e renovadas estratégias das guerrilhas urbanas ou rurais, movidas pelo natural sentimento de defesa da família,  da casa, da terra, das tradições, da visão do mundo. Aí então os ianques retaliam o máximo possível.

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E vai ser assim, indefinidamente, enquanto os Estados Unidos quiserem impor a países de outra concepção de vida a chamada pax americana sob a quase inocente (porque inviável) forma de democracia! Imagine-se pensar em fazer do Iraque uma democracia o mais perto possível do modelo ianque, com poderes executivo, legislativo e judiciário! No Iraque, como foi no Irã, a forma de aglutinação social vigente é  a religião e o tribalismo,  quase no mesmo estágio de desenvolvimento de mil anos atrás.

A única maneira de se conseguir a paz duradoura no Iraque ou no Afeganistão é deixar os iraquianos e afegãos  resolverem à sua maneira os seus problemas. Não haverá nenhuma química que faça mais tolerável a convivência entre os dominados resistentes e os dominadores cada vez mais acuados e mais temerosos. Isso vale para a Coreia, também.

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Química, porém,  não lembra apenas guerra, envenenamento, destruição. Quer dizer também, no mundo todo, mais conforto, mais progresso, mais qualidade de vida, mais domínio de doenças, de endemias. Além disso tudo, tem o significado especial de aproximar pessoas, através do descobrimento de uma afinidade particular que as pode unir para sempre.

 É a tal química do amor. A própria Real Sociedade Britânica de Química vem-se mostrando interessada em explicar o que acontecia e acontece com duplas famosas que o cinema universalizou, tão forte e tão definitivamente unidos, apesar de tantos fatores contrários.

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Quem, de nossa geração, não torceu pelo bom êxito  daquela química que aproximava dois astros de Hollywood – Spencer Tracy e Katharine Hepburn? Trabalhavam sempre juntos, davam-se maravilhosamente bem, e podíamos sossegados ver seus filmes –  ao fim e ao cabo tudo daria certo para eles. Os americanos, em sua feição de gente comum, nem poderiam supor que os dois viviam pecaminosamente juntos, porque Spencer Tracy era casado e católico, o que desde logo descartava a hipótese tão comum nos Estados Unidos de haver o divórcio dele com a esposa e o posterior casamento com sua companheira de tela e de vida cotidiana. A mulher jamais lhe concedeu o divórcio porque, segundo sua religião, seria compactuar com o erro. Como complicador, o casal Tracy tinha um filho deficiente mental que exigia a máxima dedicação do casal.

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Mas a Real Sociedade Britânica de Química  quis ir fundo na análise dessas irresistíveis atrações que aproximam pessoas, as unem com total naturalidade e as conservam assim pela vida toda. Contratou, entre muitos outros,  um cientista cujo nome está ligado até ao estabelecimento da fórmula definitiva do Viagra. Eis uma das conclusões dele: para a maioria dos casais estudados,  a tal química pode ser diferente da atração física pura e simples. Pode até ser isso, mas é isso e mais alguma coisa, algumas coisas, melhor dizendo, como afinidade intelectual e respeito às convicções do(a) parceiro(a).

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Algumas dessas reações químicas, intensíssimas para seus participantes, apesar disso conseguem passar despercebidas para as pessoas de suas relações. Não foi o caso de Spencer e Katharine, que desde os primeiros filmes juntos já deixaram exteriorizada a profunda afetividade que os marcava, apesar do puritanismo dominante nos códigos vigentes e muito respeitados na cinematografia de Hollywood. O caso amoroso de ambos, “que deflagravam a faísca que parecia colocá-los em estado de combustão”, na hiperbólica descrição de um amigo, teve tácita aceitação social,  varou os anos 40, 50 e 60 e só terminou com a morte de Tracy, logo após os dois terem concluído, em 1967, o surpreendente Adivinhe quem vem para jantar, com  Sidney Poitier no papel do negro culto e vitorioso que vai pedir (e conseguir) a mão da branquíssima filha do casal.

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Outras conclusões dos especialistas na química amorosa: nos casos de pleno entendimento entre duas pessoas, uma delas possui qualidades que complementam o outro. Hepburn era vibrátil, impetuosa; Tracy, sólido a ponto de parecer  travado. Ela era padrão de elegância no trato social  e na aparência pessoal; ele não dava a mínima importância à exterioridade, em qualquer de suas facetas. Mas (advertem) o bem-sucedido relacionamento resulta da combinação adequada de um coquetel de ingredientes, o que torna impossível não só tirar disso tudo conclusões científicas, como também desanima qualquer tentativa de dar conselhos e sugestões nessas situações de rara ocorrência nas relações interpessoais.

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Exemplo diametralmente oposto  na questão da química cinematográfica foi dado com o fracasso do filme O príncipe encantado (1957), que reuniu dois dos mais célebres atores do cinema mundial: a  maravilhosa Marilyn Monroe e o notável intérprete inglês Laurence Olivier. Os dois tinham  qualidades pessoais incomuns. Postos frente a frente sob as luzes das câmeras, nada somaram, nada acrescentaram um ao outro. Eram mesmo representantes de diferentes épocas e se pautavam por diferentes valores.

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De qualquer maneira a Sociedade de Química diz ter ficado muito satisfeita com o andamento e a conclusão da pesquisa: se ninguém sabia direito o que vinha a ser Química, a partir do relato do longo convívio entre Spencer Tracy e Katharine Hepburn tudo ficou invejavelmente claro.

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Fico solidário com você, leitor ou leitora, que enquanto lia este meu texto meio pesado, ia remoendo que também você entende bem esses casos de química pura entre pessoas e sabe como isso faz toda a diferença na vida.

 

13/04/2013
emelauria@uol.com.br

 

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