A casa ao ladoAqui, bem ao lado, havia uma casa sobre o riacho. Com tanto espaço neste mundo, ainda mais há um século, como é que alguém precisaria construir em cima de um córrego? Da sala principal, assoalhada de tábuas rústicas, com falhas de centímetros, podia-se ver a água espertinha que corria, na silenciosa penumbra. Quando o riozinho crescia com as chuvas e com a enxurrada das ruas, o barulho daquela água subindo de nível e ameaçando inundar a casa toda – chegava a amedrontar. Sempre se ia lá para ver a cena. Córrego bom de pesca, mais de peneira. Os meninos daqueles tempos vadios dividiam-se em dois grupos, tarefas bem marcadas e sabidas: a maioria com bambus vinha agitando o leito, remexendo nas margens, enfiando as mãos nas locas dos cascudos, de onde saíam alguns, resistindo à agressão com um ronco áspero, inútil. Os restantes moleques, armados de peneiras domésticas, postavam-se no término do canal atijolado que marcava também o limite da casa sobre o rio. Agitando as águas, sacudindo as plantas marginais, os garotos obrigavam lambaris, bagres, um ou outro mandi a caírem nas peneiras. Era uma alegria recolher aqueles corpinhos prateados ou lisos debatendo-se à luz crua do sol. O cheiro deles impregnava nossas mãos, algumas vezes alcançadas pelos ferrões dos bagres ou pelas barbatanas eriçadas dos acarás. Depois, a partilha quase sempre justa, a ida para casa, a festinha da mistura extra: peixes torrados na farinha. Muita gente simples morou na casa sobre o rio. Às vezes alugada como um corpo só, outras vezes partilhada por duas famílias, com entradas independentes, uma em cada margem do rio sem nome, apenas o corguinho. Zacarias, o Zé Caria na acomodação fonética, era um boiadeiro velho, corpulento e bom. Sua família por mais de dez anos ocupou a casa inteira, as duas porções do terreno, água por baixo. Na margem direita, a entrada principal, com seu terreirinho batido, limpo de uso constante, a goiabeira junto à cerca de arame que dava para a nossa rua, ainda quieta e poeirenta. Ele chegava, amarrava mal e mal o cavalo no tronco da árvore, com um cocho perto. Subia sem pressa uma escadinha que dava para a sala. Num mancebo, lugares para o chapelão de abas largas, para o rabo-de-tatu, para a capanga. Livrava-se das esporas. Usava dentaduras duplas, com umas incrustações centrais de ouro; tinha filhos e filhas, todos trabalhadores, silenciosos e tristes. Menos tristes que a mulher, D. Benedita, permanentemente com cara de quem tivesse acabado de chorar. Era que anos antes, um filho – que ficou o mais querido, porque ausente e perfeito para sempre – quando cavalgava num pasto, não dominou o animal espantado, que desembestou pelo campo fora. O pé do menino ficou preso no estribo. Arrastado numa trilha pedregosa, a cara dele virou irreconhecível posta. A tristeza da mãe era mesmo sem consolo, a ponto de ignorar marido, os outros filhos, vizinhos. Uma vez ou outra procurava sair de seu amargo mundo, conversava com as pessoas, mas logo se internava de novo na mesma recordação. Vivia com a imagem do menino desfigurado e morto. Só. Havia a mãe de D. Benedita, a entrevada D. Cidália, que nos parecia imperdoavelmente velha, enrugadíssima como as índias dos filmes seriados, enrodilhada sempre na cama quase escondida numa alcova que adquiriu a morrinha misturada de suor, urina, cataplasmas, emplastos. Um dia, ela chamou minha mãe e disse: - Dona, aquela jabuticabeirinha que cresce perto da janela da cozinha, dou de presente para a senhora; cuide bem dela. Se Deus for servido, espero não alcançar ver as frutas. Minha mãe mandou arrancar com cuidado a fruteira e a plantou em nosso quintal. Hoje, árvore velha, ela floresce e frutifica, engalanada e majestosa. À sua sombra a família e os amigos se encontram e se confraternizam, há bem mais de meio século. Zé Caria e família se mudaram assim de repente, voltando para uma cidade bem menor do que a nossa. Nunca mais vi D. Benedita, nem os filhos, a não ser Maria, uma que não tinha o movimento do queixo. Falava com a boca fechada, mal movendo os lábios, como se fosse a guardiã de penoso segredo. Dona Cidália já tinha morrido, logo depois que uma enchente mais enérgica chegou a atingir o seu leito de entrevada. Zé Caria, eu o vi umas tantas vezes, mas nada perguntou de ninguém, não revelou interesse a respeito de coisa alguma. Gente nova e gente velha habitaram a casa sobre o rio. De quase todos, nem guardo os nomes, o tempo de permanência. Como esquecer, porém, Leopoldina, filha de escravos, agregada dos Feijós? Quando lhe perguntei, eu já rapazola, qual seria sua idade, ela me respondeu sem mágoas nem aditamento. - Não sei, meu filho... Vivi um bom tanto, bem mais do que eu merecia. Quantos metros entre a casa ao lado e a nossa? Alguns poucos da cerca, outros tantos de paredes. Esse pequeno trajeto, feito dia após dia, por anos a fio, custava à velha Leopoldina uma hora de passos tardos, de paradas e gemidos, de arrastar com cuidados aqueles pés forrados de olhos-de-peixe. Chegava, enfim. Ajeitava-se na sua cadeira próxima à porta da cozinha, buscava o cigarro de palha e fumo macaio oculto na orelha por um pano de cabeça. Tirava suas baforadas, soltava fumaça pela boca e pelo nariz, apagava-o com a unha do polegar e recolocava-o no lugar de sempre. Só falava se solicitada. Acompanhava os acontecimentos bons ou maus das duas casas com um olhar de quem tudo compreendia, de quem já não se espantava com nada. Havia nela uma finura, uma discrição, um tato que bem sei onde aprendeu. Não posso falar de Leopoldina com toda a leveza de coração. É que, ao ser internada na Santa Casa para morrer de velhice, só recebeu uma visita minha na desolada enfermaria de mulheres indigentes. Eu não voltei lá, não sei se muito confiante na sua recuperação, não sei se por não ter avaliado, na fatuidade de meus vinte anos, a riqueza daquela vida tão limpa, tão digna, bela prova de como as pessoas podem passar incólumes pelas mutações alheias. Enterrada numa cova rasa qualquer, hoje nem uma cruz marca o repouso de uma boa mulher, sempre em paz com a vida. Só uma enchente muito furiosa desalojou dali os Feijós, depois de invadir a casa toda, derrubar a cozinha, arruinar paredes e parte do telhado. A Prefeitura providenciou o resto da demolição, com a velha casa resistindo a tratores, a cabos de aço. Apenas alguns vestígios dela ficaram, logo encobertos pelo capim alto que se impôs a todo o terreno, nas duas margens. Derrubaram a goiabeira, sumiram com o cocho, construíram um muro cinzento em toda a frente do terreno, hoje baldio. As enchentes já venceram dois ou três deles, mas o reconstroem sempre. Ninguém mais pesca no corguinho, poluído de esgotos, falto de meninos com tempo. Sobre as águas turvas recai a luz crua do mesmo sol, que ali brilha inútil e sem público. (Texto de 1987, inserido no livro Nós, os nossos, alguns intrusos, de 1997, e agora retocado)
13/03/2010
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