Matéria de Memória
1.
Lá no Bonsucesso, quando a Siqueira Campos era mais um longo e
empoeirado caminho rural do que via urbana, havia muitos pomares. Um deles,
inacessível às incursões dos meninos que iam à escola de manhã e tinham a
tarde toda para as mais convidativas invenções. Não se dizia: “Vamos
furtar”, “Vamos roubar”, mas “Vamos buscar frutas”, porque vigorava entre
nós, apoiados intuitivamente no direito natural, a serena certeza de que
laranjas, bananas, mexericas não podiam ter donos. Frutos da terra, haveriam
de pertencer a todos, a quem as apanhasse nos pés e as consumisse ali
mesmo, matando a sede, a fome, satisfazendo o prazer de tê-las tão
disponíveis, à mão.
Inatingível aquele
pomar não só por causa da cerca de nem sei quantos fios de arame farpado,
mas pela presença de uns cachorros, nada desses assassinos profissionais de
agora, apenas vira-latas fiéis, competentíssimos no cumprimento do primário
dever de vigiar a propriedade do seu dono. Se moleques não podiam entrar
assim sem mais nem menos e atacar laranjeiras, limeiras e moitas de
cana-caiana, moleques não entravam, mesmo. Os cachorros aplicavam-lhes os
dentes num sensível lugar – os calcanhares dos pés descalços.
Foi, pois, surpresa
o convite insistente, extensivo a todas as pessoas disponíveis: que
entrassem livremente e logo no pomar, porque tudo aquilo ia ser arrasado. Já
estavam por lá uns tantos homens armados de machados, foices, enxadões,
picaretas,rastelos, prontos ao corte das árvores e à remoção de seus restos.
Desprovidos de sacolas e bornais, só coube aos beneficiários de tanta
gentileza encher os bolsos e deitar o maior número possível de frutas entre
a barriga e a camisa, fortemente amarrada à cintura, como se fosse
improvisado saco que fazia a todos atarracados e curvados por causa de tanto
peso. Ao fim de algumas horas, o belo pomar se transformou num campo de
perdida batalha cheio de escombros e de buracos.
Isso faz muito,
muito tempo. Ou me engano redondamente ou o pomar arrasado ficava nas
proximidades do atual estádio do Bonsucesso F.C. Foi então que abriram ruas
perpendiculares à Siqueira Campos, em direção ao córrego. Criou-se um bairro
pequeno, perto de tudo e muito sossegado.
Aceito acréscimos,
confirmações e retificações deste meu relato de memória que deve ter bem
mais de sessenta anos. Vamos lá, Donato Biacco, Paulinho Zacchi e outros
velhos moradores da Aparecida e adjacências!
2.
Respeitosamente velha a casa de minha tia Nenê (irmã de meu pai, acho
que nem ela se lembrava de seu nome de batismo – Jerônima), casada com
Marcelo Portela. Ficava na Silva Jardim, esquina de Rui Barbosa. O exterior,
daquele tipo muito simples, rude, penso mesmo que com algumas partes de
pau-a-pique. Por dentro, cômodos grandes, todos de assoalho de madeira,
tábuas gastas de tanta água e sabão. Ao fundo, entre o corpo principal e a
cozinha, um alpendre também de madeira, cheio de vasos com plantas floridas
ou folhagens. Havia ali um frescor e uma tranqüilidade de não se esquecer
nunca. Dele saía a escada que dava para o quintal, pequeno, pedregoso, com
canteiros de dálias e além de tudo, imbatível na qualidade de certas frutas
– uvas, pêras, figos.
Meu tio Marcelo –
homem que tinha tudo para ser triste, porque perdera dois filhos do primeiro
casamento, um menino mordido de cachorro louco e uma menina atacada de
tétano -, meu tio ainda era bem-humorado e tratava com desvelo suas
parreiras, suas pereiras e, mais que todas, sua figueira. Nem poderia
imaginar que ainda veria muito mais tarde outra filha morta em acidente de
carro.
Tenho aqui bem
nítida a figueira: baixa, esparramada de galhos, no tempo certo carregada de
frutos, que eram encapados um a um.
Meu pai admirava a
mão do cunhado, muito feliz no podar, enxertar, mudar plantas de um
lugar para outro. Caprichosíssimo com cada árvore, a ponto de todos os anos
raspar as cepas de parreiras, por ocasião da poda anual – lua minguante de
agosto. Não me lembro em que época meu tio podava a figueira, talvez a mesma
lua propícia às parreiras, mas sei que algumas vezes meu pai apanhou galhos
cortados dela e tentou fazê-los florescer aqui em casa. Vingar até que
vingavam, mas nunca iam frutificavam. Meu pai chamou entendidos no assunto
(falavam numa inexplicável falta de polinização) sem que tivesse tido o
prazer de apanhar um só figo da estirpe daquela maravilhosa árvore de
imponência bíblica, destruída quando da demolição da velha casa.
3.
Um dia destes, para chegar de carro à Gruta de Nossa Senhora de Lourdes,
quase tive de usar mapa e bússola. É que puseram mão única na rua que sempre
deu acesso a ela. Agora, só se sobe por lá. Para se descer, usam-se as
laterais, nem sempre paralelas. Complicou muito a ida à gruta e nem sei se
há trânsito para justificar tanta confusão. Enfim, cheguei à gruta, fiquei
um tempinho em silêncio recolhido e depois tirei umas fotos que ainda
publicarei por aqui. Numa delas, está a gravura de Santo Peregrino (sic),
“protetor do câncer” (sic).
Ao olhar para o alto
do gradil de ferro de sua entrada, revi a esquecida estátua de uma espécie
de anjo encarapitado lá em cima, a uns cinco metros talvez. Num tempo muito
recuado, causou grande alvoroço entre os moradores das proximidades da
gruta e do Buracão a estranha notícia de uma criança, quase adolescente, que
se jogara de lá e batera aqui em baixo, sem aparentemente nada sofrer. Era
uma época em que qualquer coisinha dava margem a comentários, a pessoas se
queixarem constantemente das estranhezas que andavam acontecendo no mundo.
Quem daria hoje importância mínima a isso? E as coisas estranhas acontecem
cada vez mais.
Tenho das festas e
procissões da gruta recordações muitos vagas. Não sei por quê, lembrei-me
agora de um senhor corpulento e meio calvo, de sobrenome Benisse, que num 11
de fevereiro levou para lá, em carrinho puxado a cavalo, um harmônio
portátil que seria usado no acompanhamento musical da celebração da missa.
Era ainda no tempo do monsenhor Guilherme Arnold. Ajudem-me, Guilherme,
Maria e Chico Trevisan. Afinal, vocês têm idade para isso!
4. Quem ainda se lembra da Sr.ª Pascoalina Picciao, aquela
calabresinha miúda e valente que trouxe tanta gente ao mundo? Inclusive eu.
Morava no Buracão e nunca perdeu o forte sotaque de seu dialeto. Não dizia
“cinqüenta mil-réis”, mas alguma coisa próxima de “tchinquanta milarédzi”.
Nunca fui “Márcio” para ela: apenas algo parecido com “Mácimo”. Ela ficou
muito sentida quando minha mãe não lhe confiou as providências todas do
nascimento de minha irmã Neusa, quatro anos mais nova do que eu. Afinal, já
estava na cidade a parteira formada, D. Olga Pourrat.
(13/03/2004)
emelauria@uol.com.br)
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