Nós, intrusos
O pedido veio de longe, por telefone. Que não nos esquecêssemos de ir até lá, dizer uma oração em nome da família. E assim fomos, minha mulher e eu, quando amainava o calor de um dia glorioso de luz.
Esperava, confesso, encontrar ali muitas flores, o indício mais perceptível de que se visitam os mortos. Nem uma havia. Talvez por esperarmos encontrar tantas, é que também nós nenhuma levamos. Desculpa que formulo para mim e para os outros: Euclides não é um morto comum; e em certo sentido, nem morto é.
O portão da entrada dava a falsa impressão de fechado; estava apenas bem encostado.
Minha mulher e eu ficamos um bom tempo frente àquele monumento e àquelas inscrições de tanta eloquência muda. Não longe dali, num canteiro quase próximo à redoma, vicejavam centenas de lírios amarelos, e uma espécie de espinheiro erguia a sua floração delicada e branca. Apanhamos as flores que quisemos e com elas improvisamos um arranjo na sepultura que guarda o pai e o filho de nomes iguais. Por certo, motivado pelo contraste dos caules verdes e das pétalas amarelas dos lírios, aflorou-me à memória o episódio da dracena, mas não prosperou a recordação porque havia por ali tanta beleza e tanta paz, que melhor era fixar nas retinas e nos corações aquele instante incomum.
Por um brevíssimo segundo, pareceu-me compreender a solidão que se há de imaginar tanto no pai quanto no filho, isolados recentes naquele ermo do rio Pardo. Foi apenas um breve momento, porque não poderia haver solidão que se lamentasse em meio àquela serenidade criada pela quase ausência humana e pela exuberância da natureza. Árvores ostentando a vitalidade da primavera, flores explodindo em cores e formas, a luz crua de um céu sem nuvens, o murmúrio do rio, uma canoa passando lenta e discreta, dois pescadores imóveis – um no pilar da ponte, outro mal divisado no capinzal alto da margem oposta. E, integrando à maravilha aquela paisagem captada num momento de exceção, a dignidade do monumento, a nitidez do gramado, a felicidade daquelas mangueiras antiquíssimas de beira-rio que, perdendo algo do tamanho porque aterradas, ganharam posturas de guardiãs e gestos de protetoras. Tudo dominando, um calor que garantia a perenidade da Vida, na infinidade de suas variações.
Foi muito lentamente que o sol perdeu a intensidade do brilho, enquanto promessas de sombras surgiam na massa das árvores, da cabana, do aterro, da silhueta da ponte. O espelho d’água recebeu tons inesperados de abandono.
A mensagem de saudade, fixada letra a letra na rudeza do concreto, assumiu a plenitude de seu significado. Não poderiam ter sido outras as palavras escolhidas, especialmente naquele precário instante em que, frente a tanta beleza, a tanta harmonia, nossas presenças naquele crepúsculo nada mais eram do que injustificada intrusão na justeza das coisas.
Texto escrito no Dia de Finados de 1982.
Quem pediu a seu autor que fizesse uma visita ao Mausoléu, inaugurado a 15 de agosto daquele ano, foi o Sr. Joel Bicalho Tostes, casado com uma das netas de Euclides da Cunha, e principal responsável pelo traslado dos despojos de Euclides para esta cidade. Joel Bicalho Tostes faleceu no Rio de Janeiro, a 31 de dezembro de 2009.
13/02/2010
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