Histórias apimentadasMeu ex-aluno e sempre amigo, leitor permanente e cinqüentão de boa fala, boa voz, boa memória, tem um jeito especial de contar causos que poderiam perfeitamente ser classificados como caipirescos, para relembrar o título de uma obra excelente de Simões Lopes Neto, Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Meu amigo é daqui mesmo, tem sua verve e sua capacidade de detalhar a narrativa sem cair no exagero. Seus relatos deveriam até ser gravados com som e imagem, tal o poder de persuasão que revelam. Um dia destes, numa sessão ordinária (no bom sentido) do Centro Cultural Batista Folharini, ele chegou e já foi logo me dizendo: -- Estive relembrando umas histórias de um amigo nosso, fazendeiro em Araçatuba, e dono de muita terra lá pelos lados de Mato Grosso, Goiás. Elas são interessantes e eu bem gostaria que o Sr. as publicasse em sua coluna. E me contou com propriedade duas delas, que coloco no papel com os devidos cuidados e omissões porque, afinal, o DEMOCRATA tem, a par da garantia de liberdade de expressão a seus colaboradores, um padrão de linguagem e de temas que não pode ser transgredido. Isso, apesar das ousadias de meu vizinho aqui ao lado, nesta última página. Mas ele tem trinta e poucos anos, e eu... Lá vai a primeira aventura do tal fazendeiro podre de rico, que me lembrou um pouco a atitude do rei Davi, capaz de mandar para os locais mais perigosos da batalha o capitão Urias, marido da desejável Betsabá: Um camarada seu vivia com uma mocinha muuuuuuuuuuuuuuuuuito bonita, que logo chamou a atenção do fazendeiro, um fauno daqueles. O que é que o poderoso senhor fez, imitando o bíblico rei? A cada dia mandava o pobre camarada trabalhar nas lonjuras de suas terras, recomendando-lhe sempre: -- Quando acabar o serviço, não venha embora. Me espere por lá, porque quero ver se tudo saiu como eu queria. E assim, a cada dia, o fazendeirão tinha tempo mais que de sobra para se deliciar com a mocinha pra lá de bonita. Tudo ia em ouro sobre azul, até que o camarada chegou ao patrão e lhe disse: -- Seu Fulano, tenho um assunto muito sério pra tratar com o Sr. -- Coisa de serviço? -- Não, não é coisa de serviço. É a respeito de Fininha. (Fininha era a tal mocinha mais que bonita.) O fazendeirão tremeu nas bases, tentou desviar o assunto, mas não deu. Não tirava os olhos do cinturão do camarada, onde vicejava um peixeira daquelas. -- Então, pode falar. -- Não, aqui não dá pra conversar. Vamos pra um lugar mais sossegado. (Ai, pensou o galanteador, ele me leva pra longe, me mata com sua peixeira e depois vive como se nada tivesse acontecido...) Fazendeiro que se preze não pode dar parte de fraco na frente de empregado algum. Encheu-se de coragem e decidiu: -- Então vamos pela estrada da cidade. Percorrido pouco mais de um quilômetro no jipe, o camarada diz: -- O Sr. pode parar. Aqui está bom. (Valha-me Deus, se for chegada minha hora!) -- Então, o que é que há com a Fininha? -- O que há? O Sr. nem acredita... Ela está traindo nós dois com o Juca Soldado!
Segunda história: As notícias que chegavam a Araçatuba não deixavam dúvida: estavam grilando as terras do fazendeirão lá pelas bandas de Mato Grosso. O jeito seria mandar para lá um profissional de confiança, bom no gatilho e capaz de acabar com os invasores. O fazendeiro contratou o melhor sujeito para o delicado mister. E o sujeito se saiu muito bem. Em pouco tempo os invasores foram afastados daquelas terras, sabe-se lá como. Talvez até alguém tivesse sido mandado para o outro mundo, porque a fama do matador o dizia capaz de tudo. O fato é que, restabelecida a ordem nas terras do patrão, o sujeito foi ficando, foi ficando, porque estava enrabichado com uma morena delicada de feições, bem-feita de corpo. O fazendeiro, visitando suas terras, ficou caidinho pela mulher do tal e resolveu acomodar as coisas a seu jeito. -- Olhe (era ele falando com o empregado), será bom pra mim e pra vocês que passem a residir na casa do administrador. Quem não teria gostado de semelhante oferta? A casa era ótima, com a particularidade de situar-se numa ilha, de tal forma que o empregado, para trabalhar, todos os dias precisava atravessar de barco o braço de rio. Enquanto isso o patrão... Ele não contava, porém, com a firme resistência da morena delicada de feições. -- Fique o Sr. sabendo que sou mulher de respeito, viu? E saiba também que vou contar tudo pro meu marido... A viagem de volta para Araçatuba foi assim resolvida de hora para outra, às carreiras. Ele deu às de vila-diogo, como se dizia nos tempos de antanho, ou seja, fugiu. O patrão ficou meses sem aparecer nas suas terras, apesar dos muitos recados do empregado, sempre lhe reclamando a presença na resolução de problemas que não eram da alçada de funcionário algum. Até que não teve como evitar o cara-a-cara com o marido, que com certeza sabia de seu atrevimento para com a morena delicada. O encontro dos dois homens se deu em clima de pouca prosa, ainda mais que o empregado a certa altura advertiu o patrão: -- Preciso muito falar com o Sr. a respeito do que me disse minha mulher. -- Sua mulher? -- É, minha mulher. Este empregado não usava peixeira, mas deixava bem à vista de quem quisesse ver um trinta e oito de meter medo. -- O que é que há com sua mulher? -- O Sr. não repare muito no jeito dela, ela é geniosa como quê. Saiba que até pra mim às vezes ela ridica... (Ah, você nada sabe o que é ridicar? Hoje quase ninguém usa este verbo, que quer dizer negar, ser avarento, fornecer com extrema dificuldade.)
13/01/2007 |