Da arte de pôr títulos

 

 
Alegria rural

 

            Por vezes, achar o título correto de um simples conto ou de uma crônica dá até mais trabalho do que escrever o texto. Isso porque ele tem de ser original, conciso, sugerir o assunto e ao mesmo tempo esconder seu final. Não se pode entregar o ouro, como dizem ter-se feito em Portugal: Psicose, de Hitchicock, aquele filme de muito suspense,  lá se chamou A mãe era ele... Corretíssima sinopse.

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            Grande achado poético foi o nome Lusíadas, com que Luís Vaz de Camões, em 1572, batizou seu poema épico. O termo significa “canto de louvor aos lusos”. Alguns acham que foi invenção do humanista André de Resende, que o  teria copiado de  modelos gregos. O fato é que “lusíada” se emprega hoje como adjetivo, sinônimo de luso, de português. Não foi, porém, só com este termo que Camões se revelou linguisticamente criativo. Ao menos dois versos seus se tornaram proverbiais: “Um fraco rei faz fraca a forte gente” e “É fraqueza entre ovelhas ser leão”.

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            Eu sempre imaginei que guardavam particulares segredos títulos inspirados como O morro dos ventos uivantes (Emily Brontë), O sol também se levanta (Ernst Hemingway), Judas, o obscuro (Thomas Hardy), O Cristo recrucificado (Nikos Kazantakis), Almas mortas (Gogol), A condição humana (André Malraux), A luz que se apagou  (Kipling), Morte em Veneza (Thomas Mann), O finado Matias Pascal  (Pirandello), Adeus às armas (Hemingway). Todos estrangeiros, todos de sobrevivência assegurada, principalmente porque adaptados ao cinema, forma acessível a milhões de espectadores, ainda mais com os canais especializados na televisão e com o conforto dos DVDs.

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            Uma indispensável referência a José Saramago, único escritor de língua portuguesa que até agora mereceu um Prêmio Nobel de Literatura, apesar das tentativas em favor de Jorge Amado e de Carlos Drummond de Andrade. Ele, o português Saramago, foi exímio criador de nomes para suas obras. Lembrarei dois, pelos quais tenho especial apreço:

            A jangada de pedra - livro em que o autor, apoiando-se na frase mil vezes repetida  “A Europa começa nos Pirineus”, imagina que um belo dia, sem mais nem menos, na fronteira entre a Espanha e a França, a terra pôs-se a fender, riachos mudaram de curso, montes se aplainaram e planícies se elevaram. E então a Península Ibérica, com Portugal e Espanha inteiros, começou a movimentar-se, transformada em enorme jangada de pedra que percorria o Atlântico, indo e vindo da Groenlândia ao Atlântico Sul, erraticamente.

            O ano da morte de Ricardo Reis – obra em que Saramago imagina as consequências da recusa de Ricardo Reis em morrer. Ora, sabem-no tantos, Ricardo Reis é personagem de ficção, melhor dizendo, um heterônimo de Fernando Pessoa. Diferentemente de tantos autores que criam para si pseudônimos, expediente que consiste em escrever sob diferentes nomes, o poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935) lançou mão de heterônimos, ou seja, desdobramentos de sua personalidade, com fisionomias, biografias, características e filosofias próprias.  Assim sendo, quando Pessoa morreu a 30 de novembro de 1935, levou consigo para o túmulo as suas criações intelectuais Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Barão de Teive. Não pensou assim o Saramago e deu sobrevida própria a Ricardo Reis. Ler o livro para ver o que aconteceu.

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            Tenho aqui, ao alcance da mão, com elegante encadernação azul e escritos prateados, a coleção em trinta volumes “Literatura Brasileira Contemporânea”, lançada em 1974  em coedição da José Olympio/Civilização Brasileira/Editora Três. Os títulos de algumas obras dão o que pensar, porque muito originais e oportunos. Assim:

Pedra bonita – romance de José Lins do Rego,  baseado em caso verídico de extremo fanatismo religioso, já referido por Euclides da Cunha em Os sertões.

Olhai os lírios do campo -      do gaúcho Érico Veríssimo. Evidente a inspiração bíblica do título. O autor perdeu um pouco de prestígio por não ser esquerdista de carteirinha. Segundo o juízo de muitos, a melhor coisa que Érico produziu foi o filho Luís Fernando...

Pensão Riso da Noite, de José Condé. Que melhor título para um romance que tem como pano de fundo a vida boêmia?

Contos de aprendiz – a única e bem-sucedida incursão de Carlos Drummond de Andrade pela ficção em prosa.

Olha para o céu, Frederico! – do prematuramente falecido escritor fluminense  José Cândido de Carvalho, autor também do memorável O coronel e o lobisomem, muito bem adaptado ao cinema.

A hora dos ruminantes – de J.J. Veiga, a maior nítida vocação brasileira para o realismo fantástico, tão ao gosto de grandes escritores latino-americanos como Gabriel García Márquez.

Laços de família – contos muito legíveis da difícil Clarice Lispector. Um deles virou “caso especial” na televisão – o doloroso “ Feliz aniversário”.

Chuva imóvel – contos do imprevisível procurador de Justiça e bicho-do-mato  Campos de Carvalho, que o sobrinho Mário Prata repôs em circulação   com um grosso volume que abriga seus principais trabalhos. Dentre eles, um de título imbatível pelo estranhamento e sonoridade: O púcaro búlgaro...

            Bom de título foi Jorge Amado, como o é atualmente um outro baiano muito sagaz, o João Ubaldo Ribeiro. Do primeiro, insuperável pelo sensualismo e poder de sugestão Gabriela, cravo e canela. Do outro, a coragem de batizar livros com os estranhos nomes de Viva o povo brasileiro, Vencecavalo e o outro povo, O sorriso do lagarto.

            Agora, título adequado para romance tristíssimo com tema pra lá de perigoso, nenhum supera Lavoura arcaica, do sempre surpreendente Raduan Nassar. Ler para crer.

 

12/11/2016
emelauria@uol.com.br

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