Falando sério
· Daí a condescendente paciência que precisamos ter com a fugidia lágrima de um, com o abraço mais apertado do outro, com as fórmulas de sociabilidade postas em prática por aquele. Condescendente paciência com os que estão de pilequinho, dotados da especial facilidade de passar da mais esfuziante euforia para o choro mais sentido e verdadeiro, fortalezas emocionais prestes a ruir, a custo controlando a vontade de tornar pública aquela secreta verdade, tão essencial e tão mascarada. · Como se não bastassem os riscos e os danos da febre aftosa e da gripe aviária, de repente outra ameaça potencial – a febre maculosa causada pelo carrapato--estrela. Duvido que alguém nascido em cidade nos últimos cinquenta anos já tenha visto um carrapato-estrela. No entanto, em outros tempos, andando-se pelos enormes pastos que hoje se transformaram em bairros como Bela Vista, Vila Verde, Jardim Aeroporto, Jardim Margarida, altos da Vila Pereira, corria-se o risco de apanhar algum deles. Sua picada era traiçoeira, parecia anestesiar; penoso o seu arrancamento da pele. · Padre Adauto rezava missas em menos de meia hora, porque falava muito pouco, quando falava. É dele o mais curto sermão que ouvi em toda a minha vida: ”Que as palavras do Santo Evangelho produzam frutos em vossos corações”. · Não me lembro de haver falado a público mais dispersivo do que aquele presente à entrega das novas instalações da Biblioteca Municipal e da Hemeroteca Jornalista Paschoal Artese. O grande culpado foi o sol inclemente daquela manhã, a assistência postada defronte ao recuperado prédio que já tinha sido, através de um século, cadeia, fórum, casa de cultura, tribunal trabalhista... · Num país e numa época em que a mulher ensaiava sua libertação das peias seculares e dos tabus limitadores de sua participação social, sobravam razões para que Cecília Meireles não aceitasse para si o título de poetisa. Desde os primórdios de sua produção, jamais se permitiu o misto de ociosidade e diletantismo que se pode conotar no termo, quem sabe aplicável a mulheres que também faziam versos. · É bem cedo ainda e a cidade aos poucos supera as suas missas do galo, suas ceias, suas festas inapropriadas pelo mau jeito, suas corridas desabaladas com buzinaços e extemporâneos foguetórios. Pelas manifestações externas, Cristo deve ter renascido em pouquíssimos corações, mas nem por isso as pessoas deixam de se cumprimentar de um modo diferente, cordial. · Às vezes cometemos injustiças com os outros, achando que eles é que são injustos. Foi o pensamento que me ocorreu durante o velório do velho mestre: tão pouca gente prestando homenagem a uma figura singular em nossa acanhada vida cultural. Depois, pensando melhor, cheguei a uma outra conclusão, que nos cabe a todos: há uma hora adequada de se morrer – nem muito moço, nem muito velho. E o professor morreu muito velho, aos noventa e seis. O que quer dizer isso? Que ele enterrou muita gente, muito colega e muito ex-aluno. · Deve ser a influência do mar, do ar carregado de sal, do vento que vem de muito longe. A verdade é que os mesmos fatos tratados por jornais do Rio e de São Paulo dão textos bem diferentes, como se em São Paulo até as coisas leves devessem ficar pesadas, e no Rio até as pesadas devessem ganhar sempre o toque da leveza carioca. · Dizem os estudiosos que o século XIX, tão importante para o progresso da humanidade, não terminou a 31 de dezembro de 1900, mas resistiu bravamente até o início da guerra mundial de 1914, quando a belle époque sucumbiu à violência das nações ditas civilizadas. Outro historiador, em face das gritantes desigualdades sociais, garante que ainda não saímos de todo da Idade Média. · Quem acumulou razoável quantidade de livros, de recortes, de fotos, sabe como é inevitável: você se propõe procurar uma coisa e acaba se entretendo com outras, perdendo tempo, desviando-se facilmente do objetivo inicial. E assim foi que me caiu às mãos, uma tarde destas, Floradas na serra, belo romance de Dinah Silveira de Queiroz. Lembro-me bem do enredo do livro, que trata dos conflitos vividos por tuberculosos internos nos sanatórios de Campos do Jordão. · Não me lembro de outro julho tão chuvoso como este de 2004. Tão chuvoso, que para bem aproveitar o tempo, até foi possível uma incursão no Google e ficar sabendo que lá estão armazenadas dez mil e quatrocentas referências ao tema chuva na literatura mundial. Por razões de ordem vária, não farei uso dessas referências nem das múltiplas passagens em que na Bíblia se trata do assunto, concretamente como no dilúvio, a mais abundante das chuvas, ou na alegoria da casa construída em lugar inseguro que não suportou uma tempestade mais violenta e se esbroou toda. · Vocês aí, que ficam se martirizando quando vão conferir o rombo no cheque especial, já podem apontar um culpado para a maioria de seus males, e ele não é o mordomo. Leio numa versão brasileira do The Wall Street Journal a esclarecedora matéria que fala a respeito de uma tal Wazhma Samisay e suas amigas que, tendo um dia ruim, vão meio adoidadas às compras, na prática do ritual batizado de “terapia do varejo”. · Pasárgada. Durante séculos, figurou nos mapas, nas crônicas e nos feitos. Ninguém, contudo, que lhe espremesse a sonoridade (alegre, com tantos aa) e as ocultas promessas. Manuel Bandeira sim. E por causa de um instante individual de fuga, nossa ainda pobre (especialmente de símbolos) literatura ganha um xangri-lá, um nirvana em que, paradoxalmente, a mobilidade é um prioritário objetivo a se alcançar. · Ensinar, para Highet, não é tarefa exclusiva da escola, mas sim de todos os comunicadores humanos: pais, sacerdotes, médicos, diretores de empresas, chefes de serviço e contramestres, políticos e administradores, escritores e artistas, jornalistas e anunciantes. Ao tempo da publicação do livro, a televisão não havia ainda assumido o seu avassalador papel de conduzir drasticamente a vida e o destino de multidões encantadas pelo poder conjugado da imagem, do som e das técnicas desenvolvidas na propaganda. Num sentido estritamente escolar, Highet centraliza suas preocupações em algo que hoje parece (apenas parece) relegado a plano secundário – a personalidade do professor. · Todos estes pontos de vista são meus, genuinamente meus, extraídos dos primeiros artigos de meu livro Tempo ao tempo, Editora da Universidade de Franca, 2008. Posso dizer que se trata de um belo volume (ao menos por fora, pela capa e pelo aspecto gráfico!), do qual ainda tenho mais exemplares do que desejaria. Já nem falo em vendê-los, porque neste nosso Brasil não parece inteligente gastar dinheiro com isso. Falo em doar, de graça, ou de grátis, como dizem por aí. Eventuais interessados podem acertar, pelo telefone 3608-4755, a hora de passar aqui pela minha casa (R. Siqueira Campos, 47) e apanhar o brinde, sem mesmo a obrigação de ler. Só não me peçam entregas em domicílio ou remessas pelo correio.
12/11/2011
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