O JARDIM E O JARDINEIRO

 

O FINADO JARDIM

Nome oficial: Jardim Artístico.

Nome real: Jardim do Artese.

Formado a partir de 1913 (conforme inscrição que a incúria dos homens se encarregou de perder) no local onde era o cemitério municipal.

Durou, com todos os percalços, até o final da década de 50, quando, sem esta nem aquela, foi arrasado.

Antes, houve a dura luta contra a falta de todos os recursos, inclusive o da falta d’água, para que seus tristes canteiros não morressem à míngua. Símbolo dessa ingente fase de transportar água com um regador é o jardineiro Domenico Gervasio, o único funcionário que criou amizade aos ginasianos, os verdadeiros donos de tudo aquilo.

Quem, estudando no “Euclides da Cunha”, desde sua inauguração, não terá matado alguma aula e se refugiado naquele território livre?

Hoje, lá está a Praça dos Três Poderes, com seus belos edifícios  da Prefeitura, Câmara e Fórum, rodeados de crescentes árvores, de gramados polidos, de flores e monumentos sugestivos.

Mas, pergunto-me, não se teria encontrado nas amplidões desta terra outro local para tudo isso, sem se destruir o velho Jardim do Artese, com a majestade de suas árvores, o inacabado do Altar da Pátria, o rústico do tijolo em contraste com a finura do mármore de Carrara? Um jardim cuidado por particular, cercado de grades, com quatro portões e nem por isso inacessível ou vedado. Tão aberto ao público, que seus emperrados portões passaram a ter apenas efeito decorativo.

Gerações e gerações repousaram, amaram ou simplesmente estiveram à sombra  de suas árvores que lembravam paisagens de Fragonard e Watteau. Gerações e gerações acabaram achando os seus secretos caminhos e seus velados encantos. Lá estavam a Sereia, o tamarindeiro, a figueira, as estátuas das Quatro Estações, a concha mitológica, o chafariz sempre seco no meio do jardim, os tufos de arbustos renitentes a todas as crises. No Altar da Pátria, encimado por uma espécie de coroa luminosa com a inscrição “Ordem e Progresso”, o escudo da falecida  República dos Estados Unidos do Brazil, com z e tudo. E a efígie de José Bonifácio e outros epígonos da Independência, como escreveria qualquer livro didático de peso.

A destruição do Jardim do Artese pôs em circulação no processo a que deu causa, e depois em toda a cidade, um empolado adjetivo de origem grega – dendroclasta – assim como o respectivo substantivo abstrato: dendroclastia. O primeiro quer dizer  destruidor de árvores; o segundo, a ação de destruir árvores. Pena, porque não só árvores se abateram com tratores, mas todo um conjunto harmonioso, que se destinava a ser elemento fundamental na composição de nossa fisionomia urbana e em repositório intangível da memória local.

Necessidade de destruir o Jardim do Artese, jamais.

Tivesse, nos anos 50, a mentalidade ecológica e preservacionista a crescente força que adquiriu depois, em nenhuma hipótese, sob nenhum pretexto, a cidade haveria de perder um de seus recantos mais cordiais.

 

O JARDINEIRO ITALIANO

Chamava-se Domenico Gervasio e durante anos fez o impossível para que o enorme e incompreendido Jardim do Artese tivesse mesmo algo de jardim.

Eu e outros estudantes de muitos anos atrás guardamos com nitidez e saudade sua fisionomia, seus arrancos, sua fala enérgica, mistura bilíngüe de afugentar vândalos de todas as idades, que, deixados à solta, reduziriam a nada a Sereia, a figueira (deitava imensa galharia e nos dava de graça uma nauseante goma de mascar), os canteiros sobreviventes, as estátuas de mármore das Quatro Estações (hoje felizmente aproveitadas num logradouro público).

Nós o chamávamos de carbonário, mais precisamente de carbonário de uma figa. Ele aceitava a amizade e a companhia de uns poucos dos nossos. Nós o provocávamos falsamente, pelo renovado prazer de vê-lo deixar o regador, fechar um dos punhos, e num rompante peninsular, retorquir socando o ar: carbonari d’una figa!  Findo o cerimonial invariável de chegada, a gente conversava e na despedida se voltava a ameaçar da boca para fora. Depois se ia embora em paz.

“Io sono STANCO di questo lavoro” (estou cansado deste trabalho), dizia e gesticulava adequadamente. “Um giorno amazzo la facia desses malcriati que me estragam tutto”...

De baixa estatura, atarracado e sangüíneo, pele engelhada de sol, já estava então na casa dos sessenta  e não ostentava sequer um fio de cabelo branco.Morreu faz anos, depois de muito sofrer.

Ao dar-me a notícia de sua morte, Orlando contou-me  que, nos últimos dias, um equívoco proporcionou raro momento de felicidade ao hospitalizado Domenico: à sua frente, ao invés do costumeiro caldo, surgiu um prato de macarronada, com molho e tudo. Aí o velho Domenico tratou de saciar a vontade, antes que dessem pelo engano. Quando vieram pedir satisfações do abuso, ele passou significativamente a mão pelo ventre e, a custo, confessou:

-- Oggi ho mangiato bene. (Hoje comi bem.)

 

Até aqui, dois textos meus, de diferentes épocas, coligidos no livro Tempo & Memória, de 1986.
 

 

ATUALIZANDO

Eu não tiraria hoje nenhuma palavra que fiz na defesa do velho Jardim. Ao contrário, acrescentaria outras, menos amáveis.

O então prefeito Lupércio Torres fez reconstruir, com linhas modernas, o Altar da Pátria e nele inseriu o escudo da República, a efígie de José Bonifácio (retirados do velho Altar) e uma placa de homenagem a Paschoal Artese, “jornalista incansável”, na redação que lhe dei.

Quanto ao velho jardineiro, explico que “Orlando” é seu filho, meu amigo de saudosa memória, meu motorista em tantas viagens. Dele guardo as melhores recordações, a começar por uma foto em que ele “supervisiona” o trabalho voluntário e prazeroso de uns meninos da Várzea (eu estou lá) plantando, uma a uma, seguindo uma linha de barbante,  as mudas de grama no campo de futebol do Rio Pardo, onde pelos anos seguintes veríamos em ação alguns dos melhores craques do chamado esporte bretão.

Como o tempo passa inexorável para todos, hoje posso contar uma passagem do velho jardineiro. Entre os nossos colegas de turma no Ginásio, havia um que fazia questão de sempre aborrecer Domenico Gervasio. Ele, contrariamente ao que se podia esperar, nunca reagia, tinha a maior paciência com o gracejador inconveniente. Um dia, percebendo minha estranheza com aquela sua atitude tão pacífica, explicou-me com uma ponta de mistério:

-- Desse aí eu tenho muita pena. Sei muito bem quem é a mãe dele...

Nada mais foi dito porque nada mais lhe foi perguntado...

 

12/11/2005
(emelauria@uol.com.br)

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