Particularidades no emprego da crase

  
Nas proximidades da captação de água.

 

Contrariando a opinião dos que acham  impróprio para esta coluna tratar de questões de língua portuguesa, arremato o assunto crase, cuidando de  especificidades, interessantes apenas  para a significativa minoria que ainda vê no domínio de assuntos gramaticais um meio seguro de bem expressar o pensamento, independente da expansão do internetês e da conivência de tantos adeptos do deixa pra lá, em matéria de rigor da linguagem.

Não há quem não tenha, estudando crase, tomado conhecimento  de alguns expedientes práticos para seu adequado uso. Dão bom resultado os  tais macetes que aconselham, no uso da crase, a se observar a substituição do a por outra preposição. Se ocorrer a necessidade do emprego do  artigo feminino a, em seguida a essa preposição, ocorrerá também a crase. Exemplifico:

Estou em dúvida se em Ir a Bahia uso ou não o acento de crase. Substituo a preposição por para: Vou para a (preposição +artigo) Bahia. Logo, o certo será Ir à Bahia. Mas Ir a Lisboa, porque Voltar de ( simples preposição) Lisboa.

Observe:

Voltei à velha São Paulo da garoa.

Justifica-se o emprego do acento grave por causa dos determinantes velha e da garoa. O adjetivo velha está concordando com um substantivo feminino subentendido: cidade.

Outros exemplos dessas concordâncias subentendidas e dos determinantes:

Referir-se à Roma dos Césares. Retornar à majestosa Londres.

Dirigir-se à euclidiana São José do Rio Pardo. A crase se dá por causa do adjetivo euclidiana, que concorda com o ocultado substantivo cidade. 

 

Compare:

Voltar a Paris (Vir de Paris)

Voltar à Amazônia (Vir da Amazônia)

Voltar a Mococa (Voltar para Mococa)

Ir à Argentina (Ir para a Argentina)

Voltar à pensão (Voltar ao hotel)

                  

Em suma:

De> a;  da> à;  para> a;  para a> à; ao>à.

Quando é possível crasear-se antes de nomes masculinos? Quando estiver subentendida uma expressão como à moda de, à maneira de:

Colarinhos à Santos Dumont (isto é, à maneira de Santos Dumont, altos e engomados). Sapatos à Luís XV (isto é, à moda de Luís XV, com saltos bem altos). Bigodes à Salvador Dali (isto é, à maneira de Salvador Dali, compridos, finos, encerados, formando ângulos retos em cada ponta). Escrever à Rui Barbosa (isto é, ao estilo de Rui Barbosa, frase clássica e vocabulário rico).

Perceba-se a diferença entre Escrever a Machado de Assis e Escrever à Machado de Assis. Na primeira frase, Machado de Assis é o destinatário do escrito; na segunda, é um modelo de linguagem a ser imitado.

Observem-se, portanto, as frases abaixo, umas craseadas e outras não, por causa da possibilidade, ou não,  de serem inseridas  as expressões à moda, à maneira:

Andar a pé e a cavalo. Baile à caipira. Bife à milanesa.  Carro a álcool. Navio a vapor. Baile à fantasia. Fogão a gás. Filé à Rossini. Barbas à Cristo (isto é, longas e repartidas ao meio, como era usual em Nazaré).

Nas expressões com substantivos iguais separados por a, não se dará a crase  porque falta o artigo feminino antes do primeiro deles:

O líquido caía gota a gota; Enfrentar o inimigo cara a cara. Se os substantivos forem masculinos, maiores serão as razões do não uso do acento grave: pau a pau,  dia a dia, ponto a ponto...

Algumas particularidades do uso da crase estão hoje soterradas  pelo irresistível processo de nivelamento linguístico:

Na linguagem literária, é de rigor não se usar a crase antes da palavra casa, no sentido de lar, residência : Voltei cedo a casa.  Este a é  simples preposição, como ocorre em Sair de casa, estar em casa, sempre sem artigo. Há visível diferença de sentido entre Sair de casa e sair da casa. Será usual o acento se casa vier determinada: Visita à casa paterna. Nas outras acepções, casa segue os princípios gerais: Fui à Casa Brasil (estabelecimento comercial); Referia-se à casa de Bragança (dinastia).

- Terra, em oposição a mar, repele o artigo e, portanto, o acento de crase: Os marinheiros foram a terra. Transcrevo, pelo notável uso das preposições, esta quadrinha do belo poeta cearense Juvenal Galeno, que aprendi (com música!) no grupo escolar:

 Minha jangada de vela,/ que vento queres levar?/ De dia, vento de terra,de noite vento de mar. Vento de terra, vento de mar, e não da terra, do mar.

- A expressão a distância, quando empregada de modo vago, sem determinantes, não pede o acento de crase: Vejo um navio a distância. Matriculou-se num curso a distância.

Se, porém, a distância for determinada, haverá crase:  O barco encontrava-se à distância de quinhentos metros da praia.

 

Por fim, algumas frases para o eventual leitor perceber as razões da presença ou da ausência do acento grave:

 

Dedicação a crianças

Dedicação às crianças

História parecida à que minha avó contava (à = àquela)

Desconheço a poesia a que o autor fez referência

Desconheço a poesia à qual o autor fez referência

Sua frequência a aulas é irregular

Sua frequência às aulas é irregular

Comprar a prazo (prazo é masculino!) e vender à vista (crase de clareza)

Preferiu morrer a entregar-se (entregar é verbo!)  Observe a regência de preferir: quem prefere, prefere uma coisa  a outra.

Chegar a alguma conclusão

A noite é bela

Andar à toa pela cidade (à toa, locução adverbial = sem rumo)

Apanhar um resfriado à toa (à toa, locução adjetiva = sem importância. Perdeu o hífen na recente reforma ortográfica)

Entrego o documento a Vossa Excelência ( Expressões de tratamento como você,  Vossa Senhoria, Vossa Alteza, Vossa Majestade jamais admitem artigo e por isso jamais são craseadas).

Trata-se de pessoa a quem respeito muito

Fazer uma viagem a São Paulo

Fazer uma viagem à bela São Paulo ( está oculto o termo feminino cidade)

O quarto recende  a rosa

Ele vive entregue a tristeza profunda

Todo empregado tem direito a licença

Chegarei à  uma e voltarei às cinco horas.

 

Para arrematar: CRASE (do grego krasis) quer dizer fusão.  Isso ocorre em centenas de termos da língua, no decurso da história dos vocábulos. Assim, nossa forma verbal  crer, do latim vulgar credere, teve um estágio intermediário creer,  no qual se deu posteriormente o fenômeno fonético da crase( ee>e) . Em espanhol, continua sendo creer.

Outros exemplos de vocábulos em que se deu a crase na passagem do latim para o português: calavaria > caavaira>cavaira>caveira (aa>a). Ponere>poner>poer>poor>pôr (verbo).

Eventuais esclarecimentos  podem ser obtidos no meu endereço eletrônico que figura no alto desta página.

 

12/05/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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