Literatura & literatura

 
Na marginal

 

Pessoa de minha amizade me empresta, meio em segredo para ela, o primeiro dos três volumes de Cinquenta tons de cinza, o livro que vem batendo recordes de venda em todo o mundo.

Não o li, mas estou mais que informado quanto à sua repercussão e aos diferentes comentários que vem provocando. Posso desde logo fazer minhas as palavras de Mário de Andrade a respeito de outro livro muito comentado à sua época: "Não li e não gostei".

 

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Consagrado romancista brasileiro contemporâneo, que até já mereceu um belo estudo de nossa Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo no livro Milton Hatoum - itinerário para um certo relato, conta em artigo recente uma cena que presenciou na Feira do Livro de Guadalajara, México, que lhe disse muito sobre literatura e solidão, essas irmãs siamesas.

Cheia de pessoas, mas não necessariamente de leitores, a Feira mostrava o estande de um escritor de língua espanhola, sentado diante de uma mesinha, à espera de leitores e potenciais compradores de seus livros de reconhecido valor literário. Com ar desolado, conversava com uma mulher, a quem perguntou onde estavam os leitores. Ela sorriu e apontou para imensa  fila de pessoas excitadas, aguardando ansiosas a vez de comprar a edição espanhola do tal Cinquenta tons de cinza.

Milton Hatoum acha improvável que leitores dessas historinhas de sexo e violência (ou sexo com violência) leiam romances de Conrad, de Dostoievski ou de Graciliano Ramos.

Para a maioria dos leitores, diz ele, um livro de ficção é puro entretenimento, algo que não convida a pensar nas relações humanas, no jogo social e político, na passagem do tempo e nas contradições e misérias do nosso tempo, muito menos na linguagem, na forma que forja a narrativa. Literatura e as artes de modo geral são preocupações de imensa minoria...

 

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Um novo e promissor veículo de boa comunicação -  o Arte-1, canal 101 da SKY, convidou professora de Literatura da Universidade de São Paulo para opinar sobre o mesmo livro que anda causando tanto furor. O juízo de valor que ela emitiu a respeito de Cinquenta tons de cinza foi mais severo ainda do que a observação de Milton Hatoum.  Fez a inevitável comparação com o conjunto da obra de Paulo Coelho, fenômeno de venda no mundo todo. A entrevistada é categórica: ambos os autores são da mesma categoria de superficialidade e produto da propaganda que:

1.Ou não poupa nem crianças e faz com que tudo gire em torno da vida de celebridades, de uma fulana famosa que teve um bebê, de sicrano que se separou de beltrana e traiu uma fulaninha, das estranhas preferências sexuais de A ou B.

2.Ou, então, vale-se de misticismo barato, de alegorias banais, de  falsa poesia.

 

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É de se perguntar que reflexos terão o artigo de Hatoum, a entrevista da professora ou, muito menos ainda,  estas mal-traçadas linhas que agora publico. Praticamente zero. Isso seria ruim em qualquer lugar do mundo, mas péssimo no Brasil, cuja modernidade corre o risco de envelhecer antes de amadurecer e não vem fornecendo aos mais jovens uma educação formal próxima do aceitável, em especial no aspecto humanístico.

Monteiro Lobato, há  muitas décadas, já batia na mesma tecla: o Brasil é um deserto de homens e de ideias. Atribuía isso à precariedade de nossas escolas, à falta de hábito de leitura reflexiva e citava um dado que o  enchia de justo espanto: o número de livrarias em Buenos Aires era superior ao das livrarias do Brasil todo! O Brasil pouco progrediu e a Argentina até regrediu  na qualidade do ensino formal e com certeza no encanto de suas livrarias.

 

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Retomo o artigo de Milton Hatoum, que o conclui assim: " ... a solidão  está na origem do romance moderno, é um de seus pilares construtivos e faz parte do trabalho da imaginação do escritor e do leitor. O tempo se encarrega de apagar todos os cinquenta tons de cinza, e ainda arrasta para o esquecimento (...) toda essa xaropada que finge ser literatura." (V. "Livros de verão e literatura de verdade", p. 8 do CADERNO 2, do Estadão de 4 de janeiro de 2013.)

 

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Em polo oposto desse mesmo  universo literário, está o delicioso  relançamento das 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga (*), o único escritor brasileiro a conquistar um lugar definitivo em nossa literatura exclusivamente como cronista, para muitos críticos um gênero menor, mas que se casa muito bem com nosso jeito de ser: improvisação, imprevidência, imprevisibilidade temática, senso poético.

Movimentada a vida de Braga, um capixaba que, partindo de Cachoeiro de Itapemirim, viveu em Belo Horizonte,  São Paulo, Recife, Porto Alegre e principalmente no Rio de Janeiro, sempre escrevendo textos sobre o dia a dia, falando de si mesmo, de sua infância, mocidade, primeiros amores — tudo impregnado de grande amor à vida. Tinha especial predileção  pelas coisas da natureza, tomando frequentemente como tema o mar, os animais, as árvores. Não apenas suas crônicas de amor e de exaltação à mulher, mas também as dedicadas a passarinhos, borboletas, cajueiros, amendoeiras e pescarias são das mais belas páginas de nossa literatura.

Correspondente de guerra, acompanhou a Força Expedicionária Brasileira na campanha da Itália. Morou uns tempos em Paris e em Santiago do Chile. Foi embaixador do Brasil em Marrocos. Viveu de 1913 a 1990.

 

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Uma de suas páginas mais sensíveis é "Recado ao Senhor 903", que transcrevo parcialmente como exemplo de compreensão humana traduzida em linguagem altamente poética, com forte cadência bíblica:

 

Vizinho:

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. (...) Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003 (...) Ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003,  me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. (...) Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.

... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e  outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou." E que o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela."

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

(*) Rio de Janeiro, Editora Record, 2008, 29ª edição.

 

12/01/2013
emelauria@uol.com.br

 

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