A Rocinha

 

Ela persistia, não faz muito tempo, no início da Rua Marechal Deodoro, caminho do bairro João de Sousa.

A rocinha era o privilegiado quintal da casa de meu sogro.

Para se chegar a ela, desde remotas eras havia dois caminhos, o natural e o oficial. Pelo natural, a gente se enfiava por entre fechadas moitas de um bambuzinho miúdo, desses que dão varas para pescar, vencia um barranco em declive, atravessava a pé o córrego, e pronto. O caminho oficial era muito mais complicado e acessível apenas aos íntimos da família. Uma vez nos fundos da casa e aberto por meu sogro o portão encravado no muro alto, descia-se uma escadinha esculpida no barranco, transpunha-se uma pinguela e chegava-se à rocinha.

O muro do quintal tornou-se o símbolo do cuidado e da autoridade paterna. Meu sogro, singular mistura de homem caseiro e de boêmio bem-comportado, tinha um desproporcional e permanente medo daquele riacho. Por isso, no local em que o terreno começava a declinar acentuadamente, ele, para sossego seu e salvaguarda  dos  filhos ainda pequenos, mandou erguer o muro, enquanto o portão era sempre mantido fechado. A chave, ele a levava sempre consigo, estivesse trabalhando no Banco F. Barreto, estivesse em suas inocentes incursões musicais, as tocatas com os amigos, à base de violino, violão e flauta. Se as crianças fossem esperá-lo abrir espontaneamente o portão, bem poucas vezes teriam ido à rocinha. Daí o caminho natural ser muito concorrido. Dão o muro saltado com crescente freqüência e desembaraço.

Lugar verdadeiramente cordial a rocinha, com seu jambeiro perfumado, suas mangueiras, bambual e eucaliptos. Amarrada por corrente a um tronco da margem e por isso sobrevivendo a tantas enchentes, a pinguela era sempre abrigada por bambus altíssimos que, atritando-se em patriótica profusão de verdes e amarelos, emitiam um grave, perene som ligado na memória a banhos de rio, a meninice. As impressões guardadas por quem brincou na rocinha são profundas e várias. Além do murmúrio do bambual e da renovada beleza do inesperado trem apitando tão próximo, com a locomotiva cinzenta envolta em enérgicas lufadas de vapor, havia ainda o ruído  fofo e metálico de todos aqueles  pés pisando as folhas lisas e secas de bambu, que cobriam todo o chão.

Mas o principal da rocinha talvez residisse em sua paz sombreada. A gente chegava e logo sentia crescer  uma secreta vontade de ficar. Havia muitas árvores, já disse. Pescava-se às vezes: lambaris com peneiras domésticas; cascudos nas locas, com as mãos. Nadava-se no calor, em um poço tornado mais profundo à custa de uma instável barragem de pedras, troncos e folhas  cercando a correnteza. Trampolim? O ombro de um companheiro ou o próprio barranco, sempre mais escorregadio, tantos os pés molhados que o pisoteavam.

Entre a incredulidade  e o sorriso dos espectadores, posso rever meu sogro indo pescar bagre, no lusco-fusco da tarde. Apesar de tudo tão perto, tão familiar, ele partia munido de lanterna, envergando um surrealista salva-vidas de cortiça, amarrado a sério em redor do corpo. E tudo para enfrentar de cima da pinguela um pobre riacho, o nosso corguinho – que dava água pela canela, como se dizia com menosprezo.

O momento quem sabe mais glorioso da rocinha foi o dia de nosso casamento. Em seus vastos espaços, numa tórrida manhã de janeiro, foram espalhadas muitas mesinhas e servidos os convidados.

Tempos depois, numa das inexplicáveis contradições de meu sogro, tão afeiçoado ao recanto, ele próprio insistiu reiteradas vezes em que a Prefeitura  construísse por ali uma ponte de concreto. Em última conseqüência, isso significava o fim da rocinha, como a conhecíamos e desejávamos conservar. Doou o terreno, não fez exigência alguma. Não se importou com as árvores abatidas (o jambeiro!), com a terra revolvida, com tudo devastado. Ele, tão pouco utilitário, tão desapegado ao dinheiro, justificava-se dizendo que a abertura da rua valorizaria os lotes que possuía mais acima – afinal vendidos sem mais vantagens por minha sogra.

Às vésperas de morrer, mal podendo articular algumas palavras, fez menção de mais uma vez olhar a ponte, em fase de acabamento. Contemplou-a da janela, em silêncio. Não chegou a atravessá-la. Porém morreu feliz, acredito.

(Do livro Tempo & Memória, de 1986.)

 

12/01/2008
(emelauria@uol.com.br)

 

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