A última testemunha

 

Com o falecimento em Itapeva, a 5 de dezembro, de meu tio materno Marcello Bertocco, desaparece a última testemunha familiar  de um estilo de vida que nasceu em fins do século XIX, marcou inteiramente o século XX e deixou sua influência até os nossos dias.

Tio Marcello foi o longevo sobrevivente de tantos filhos de italianos que, mesmo conservando hábitos  dos pais peninsulares, foram criando um inconfundível modo de ser brasileiro, adaptado o melhor possível às circunstâncias nem sempre favoráveis.

O pai de tio Marcello, o meu avô César Bertocco (1865 – 1950), representou bem aquele imigrante que não  saíra da Itália tangido pela fome ou pela necessidade extrema. Veio, por certo, no meio de tantos destinados a substituir o braço escravo na  florescente lavoura cafeeira, mas desde logo se dedicou a outras atividades menos estafantes e mais rendosas.

César Bertocco teve  carroção puxado a burros para transportar pedras empregadas no erguimento dos novos pilares da ponte metálica que estava sendo reconstruída por Euclides da Cunha. Com  menos de trinta e cinco anos já constituíra com a mulher Albina Carraro (falecida em 1930)  uma família bem numerosa. Estabeleceu-se como comerciante de secos e molhados, no final da Rua José Teodoro, onde morou o resto da longa vida.

César e Albina casaram-se a 16 de novembro de 1889, naturalmente sem saber que no Rio de Janeiro alguém tivera, na véspera,  a coragem de depor o velho imperador Pedro II. Devem ter sabido disso dias depois, mas sofreram inesperada consequência daquela revolução sem sangue. É que, muitos anos mais tarde, o chefe político local Tarquínio Cobra Olyntho chamou a atenção de meu avô para a irregularidade do estado civil do casal: com a República, a Igreja separou-se  do Estado, de forma que o casamento religioso tinha deixado de produzir efeitos civis. Ou em outras palavras: César e Albina nada mais eram, perante a lei, do que amigados, concubinos! Meus avós logo quiseram realizar o casamento legal e, segundo colorido relato de minha mãe, era de ver-se o par, acompanhado de todos os filhos, dirigindo-se ao Cartório do Registro Civil para se casar segundo a lei da República!

Ilustro este artigo com  a foto da família toda reunida há noventa e seis anos, em comemoração às bodas de prata de César e Albina (1914).

Minha mãe, Luiza, por apelido Zinoca,  é a menininha de cabelos encaracolados, abrigada entre o pai e a mãe, na flor de seus cinco anos. A seu lado, entre as pernas do pai, o caçula Marcello, agora falecido quase às vésperas de completar cem anos. Sentado numa poltrona de junco, Mário, futuro mecânico de automóveis. Apoiado logo acima dele, José, que seria comprador de café. Encostado à irmã Itália, o menino Antônio, que foi marceneiro e empalhador de cadeiras.

Da esquerda para a direita, as filhas casadas e já mães: Carolina Rondinelli, Zaíra Ribeiro de Souza e Itália Motta, todas com crianças  pequenas e  com os respectivos maridos em pé, nas proximidades delas: Pedro Rondinelli (Nhonhô), Manoel Ribeiro de Souza, o Maneco, e Augusto Motta. Recém-casada e em pé ao lado do marido Angelo Luigi Bianchin, a bela Thereza. A seguir, as filhas ainda solteiras Maria (Beraldi) e Mercedes (Scali).

Essas pessoas todas foram criadas para o trabalho, para o exercício de profissões úteis à família e à sociedade.  Prezavam a vida familiar,  acreditavam nas virtudes do esforço pessoal e eram dotadas de forte sentido de economia. Todos eles tiveram a talvez maior alegria que filhos de imigrantes podiam ter: dar aos seus próprios filhos muito mais oportunidades do que eles mesmos tinham tido.

Dois dos filhos permaneceram próximos ao pai César, com ele convivendo e trabalhando. José, casado com Luiza Della Torre, assumiu a casa, cuidou do pai viúvo e lá criou um filho e quatro filhas. Marcello, casado com Amália Righetti, morou por muitos anos na casa em frente, quase esquina com a Rua do Paraíso. Lá nasceram três de seus filhos.

Não sei por que razão, de repente meu tio Marcello, com mais de quarenta anos,  resolve mudar-se para São Paulo, mesmo se submetendo a trabalhar em empregos muito modestos, como numa fábrica de brinquedos e na portaria de um hotel de certa categoria. Sua vida familiar sempre transcorreu em ambiente pacífico e de religiosidade. Com sacrifício, formou-se médico o mais velho dos filhos - Plínio. Seu colega de faculdade Ulysses Tassinari, uma vez formado, foi clinicar em Itapeva , no sul de São Paulo, caminho do Paraná. Casou-se com a irmã de Plínio, Marly.

Como que para se cumprir um devaneio infantil, meu tio Marcello e sua mulher Amália foram morar em Itapeva. Já relatei o ocorrido em outro lugar, mas o resumo aqui:

Quando estudava no Grupo Escolar “Dr. Cândido Rodrigues”, o menino Marcello certo dia resolveu antever o seu futuro. Disse a si mesmo que de olhos fechados apontaria no grande mapa do estado de São Paulo uma cidade onde se estabeleceria.  Fez o dedo caminhar daqui para ali, de lá para cá, abriu os olhos e viu o local designado assim aleatoriamente: Faxina. O tempo passou, Marcello terminou o curso primário e, como era praxe, foi logo trabalhar. E com o pai, como caixeiro, como cuidador de um cavalo que puxava o carrinho de entrega de mercadorias na cidade e nas fazendas próximas, como abatedor de porcos e fabricante de linguiças, enfim como faz-tudo no movimentado negócio do pai,  com grande clientela. Casou-se, teve filhos, perdeu uma menina adolescente, mudou-se para São Paulo, sofreu, batalhou, manteve a bela família. Quando, levado pela filha Marly e pelo genro Ulysses para Itapeva, teve a grande revelação: durante muito tempo, o nome de Itapeva era apenas Faxina! Emocionou-se às lágrimas ao ver realizado o seu devaneio de tantos anos passados: estava morando em Faxina, antes  Itapeva da Faxina, depois simplesmente Itapeva.

Coube a meu filho Marco Antônio a inesperada tarefa de reaproximar os tios Marcello e Amália  de nossos familiares  de São José do Rio Pardo. Tendo sido juiz de Direito em Itapeva, Marco Antônio foi muito bem recebido pelos até então afastados tios e primos e com isso facilitou nossos contatos.

Pude ver como  o meu velho tio era estimado em sua terra adotiva e como se sentia bem nela. Ouvi-o contando ao lado da maciça catedral da cidade uns inverossímeis casos que se teriam passado aqui em São José. Ao fim de cada um deles, o seu pequeno auditório ria muito e meneava a cabeça num sinal de respeitosa incredulidade. Disse-me que queria morar lá ainda por muito tempo e lá também morrer.  Conseguiu tudo isso.

Numa das visitas dele a nossa cidade, Marina e eu oferecemos um jantar mais caprichado ao casal. Foi uma noite agradável, cheia de reminiscências e de esclarecimentos. A certa altura, notei que tia Amália estava com os olhos cheios de lágrimas. Perguntei-lhe o que estava sentindo e ela me disse com simplicidade e verdade:

- Estou-me sentindo feliz. Acho que é a primeira vez em tantos anos de casada que me vejo completamente à vontade nesta família...

Nada lhe perguntei, mas pude imaginar o que havia sofrido desde o casamento por amor com Marcello, contrariando talvez os desejos do velho César e sabe-se lá de quem mais.

Um compulsório escrevedor de cartas o tio Marcello. Seu padrão era inimitável: escrevia-as datilografadas numa daquelas “Remington” ou “Royal” de museu e usava uma ortografia muito pessoal, meio fonética, ao lado de frases feitas e expressões de cortesia que com certeza tinha assimilado ainda no grupo escolar. Eu mesmo ainda aprendi essas hoje inúteis fórmulas com as professoras Isaura Manita e Laudelina Pourrat .

Um dia, por comodidade minha, passei um e-mail ao filho caçula dele – Marcelo César, pedindo-lhe que  tirasse cópia de um conteúdo anexo e o entregasse ao pai. Era minha resposta a uma de suas muitas cartas. Tio Marcello não gostou da inovação e me pediu que mantivesse na correspondência com ele o velho estilo: texto manuscrito (dizia que gostava da minha letra), envelope selado e não apenas carimbado no Correio. Uma das alegrias de sua vida de velho era esperar o carteiro, apanhar a correspondência, abrir cerimonioso os envelopes e ler com vagares o que lhe haviam escrito.

Certo que meu tio morreu em paz, tomando religiosamente  o seu copo de vinho às refeições.

Faltou-lhe pouco tempo para viver uma alegria diferente: assistir, no começo do ano, à posse do genro Ulysses como deputado estadual, eleito por suas qualidades de médico sempre atento à necessidades dos mais pobres. Itapeva praticamente sozinha o elegeu.

Era um homem de fé, uma boa alma esse meu tio Marcello.  Deus o tenha.

 

11/12/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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