BANZO

  

Telefone tocando em horário estranho. Boa coisa não deve ser, é o que se pensa primeiro. Vem à cabeça o poeminha de Drummond relatando a caminhada do estafeta que vai entregar um telegrama. Vizinhos agouram, mulheres vaticinam desgraças, porque alguém na cidadezinha mineira vai receber um telegrama. Boa coisa não deve ser. O destinatário, ao dar pelo fato, treme nas bases. Doença? Desastre? Morte? Que teia terá urdido o destino na mensagem sintética e por decifrar, assim que a mão inquieta consiga rasgar o papel tão bem colado? Depois, o alívio: o nobre deputado da região, valendo-se da franquia postal, cumprimenta efusivamente o distinto correligionário pelo transcurso do natalício. Ufa!

Do outro lado, uma voz de homem que teima em não se identificar.

- Mas quem é?

- Adivinhe.

- Não posso saber. ( Se não fosse essa curiosidade boba, desligava.)

- Que pena. Você me ouviu tantas vezes e não guardou meu tom.

- Pois é. ( Esses trotes. Esses chatos.)

- Que está fazendo?

- Atendendo ao telefone.

- Não, antes.

- Estudava um pouco.

- Estudava o quê?

- O quê. Estudava, lia, consultava um dicionário.

- Não diga que você ainda faz isso!

- Agora já disse. Mas quem é?

- Estou mesmo decepcionado com você: não reconhecer minha voz.

- Pois é. Já vou desligando.

- Não, não faça isso. Telefonemas internacionais custam uma nota, e em dólar. Por favor, não desligue. Tenha paciência.

- Tá. Vou tentar. Mas onde o Sr. se encontra?

- E eu sei?

- O Sr. não sabe onde está?

- Rigorosamente, não. Sei que na Europa. Sei que na França. Sei que em Paris. Mas isso tudo pouco significa. Só sabemos o que somos, onde estamos, quando outras pessoas provam que existimos, que temos passado, laços, emoções. Os outros é que nos fazem viver.

- E por que não convive aí? Sempre existe alguém disposto a conversar.

-Conversar, converso, mas em francês, no meu francês meio primário. Não consigo pensar em língua estrangeira. Sei palavras isoladas, não frases. Um amigo meu me disse outro dia  que a gente domina mesmo um idioma quando consegue sonhar nele. Só sonho em português, em brasileiro, melhor dizendo, porque até em Portugal me senti um estranho no ninho.

- Olhe, o papo está bom, mas...

- Não, não desligue. Mais uma vez peço paciência. Para não parecermos tão distantes, digo-lhe que sou da família Sousa.

- Grande dica! Conheço o Tomé de, o Martim Afonso de. Mais numerosos do que os Sousas, só mesmo os Santos e os Silvas. Mas, Sr. Sousa, este papo está muito furado e muito caro... Ficaria mais à mão e mais em conta o Sr. ligar para a embaixada, ou melhor ainda, para o consulado brasileiro, e expor sua estado de solidão, de nostalgia, de banzo.

- De quê?

- De banzo, aquela saudade que chegava a matar os escravos africanos trazidos à força para o Brasil.

- Banzo. Bonita palavra. É ainda muito usada?

- Acho que não. Figura numa canção de Ari Barroso. Existe até um soneto de Raimundo Correia com este nome. (Isso. Dê corda e depois aguente.) Conhece?

- Hã? Não. Poeta pra mim é o Castro Alves. Como é mesmo aquele pedacinho sobre os livros?

- Sei qual é. Livros a mancheias. Não sei de cor.

- Que horas são?

- Uma e meia passada. E aí?

- Ué, uma e meia passada, eu acho.

- Negativo. Em Paris são três fusos adiantados.

- E eu estou em Paris?

- O Sr. disse.

- Ah, eu disse pra você não desligar. Estou com uma insônia danada.

- Seu...

- Não adianta xingar.

- Afinal, quem é você?

- Não foi até bom ter tido a impressão de estar ouvindo uma voz transatlântica? Não me queira mal. Você me fez um belo favor. A solidão. Você não avalia. Só não sabia que solidão também se chama banzo e que chega a matar. Banzo é saudade muito escura. Estou com banzo.

 

11/11/2017
emelauria@uol.com.br

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