“A Moreninha”, do Dr. Macedo
É numa das mais notáveis páginas de psicologia humana posta em literatura, o conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, que o rapaz de dezessete e a mulher de trinta anos estão em plena contenda verbal, em que as palavras mais escondem do que traduzem as intenções. Trata-se, é de geral reconhecimento, de espetacular vitória da linguagem fática, aquela em que se consegue falar sem nada dizer. Ou melhor, a palavra representando um de seus mais difíceis papéis – o de ocultar o pensamento. Até A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, entra no rol dos livros lidos pelo Sr. Nogueira, o rapazinho adolescente, que diz nunca haver entendido aquela prosa esquisitíssima que manteve com D. Conceição, enquanto esperava o amigo com quem iria à missa da meia-noite. Se não fossem as indicações de leitura obrigatória que tantos professores ainda fazem a seus indefesos alunos de sétima ou oitava série, acho que ninguém mais leria nem A Moreninha nem qualquer outro livro do Dr. Macedo. Não que ele seja ruim escritor, os tempos e as expectativas é que mudaram. Ele mesmo não fazia grande juízo de si mesmo, a ponto de assim se descrever em As Vítimas Algozes: “Pobre escritor de acanhada inteligência, rude e simples romancista sem arte que somente escreve para o povo”. A crítica posterior não o considera melhor: sem preocupação de mensagem, de sondagem da verdade, Joaquim Manuel de Macedo condicionou-se ao gosto popular de seu tempo – daí a falta de alcance, de perenidade de sua obra. Suas novelas repisam estrutura uniforme, com pequenas variantes, de tal forma que o enredo dos últimos romances lembra o dos primeiros. Não havendo progredido tecnicamente, suas singelas histórias de amor são eivadas de sentimentalismo, de lances românticos. Não deixam, porém, de fixar documentalmente a paisagem natural e social do Rio de Janeiro e sua sociedade pequeno-burguesa dos meados do século XIX. Estudantes, políticos, comerciantes, caixeiros funcionários públicos, comadres, mucamas, alcoviteiras – eis aí suas personagens indefectíveis se relacionando na rua, nas festas públicas ou saraus familiares. O entrecho normalmente gira em torno de namoricos que não passam do portão da rua, ou, quando passam, acabam em casamento, com todas as formalidades de um noivado honesto, vigiado por irmãs solteironas e tias velhas, como resume lapidarmente Ronald de Carvalho. Pois apesar dessa vertical queda de prestígio do iniciador do romance brasileiro, ainda admiro Joaquim Manuel de Macedo por várias outras razões. A primeira delas é que, embora formado em Medicina, nunca exercera a profissão, nem mesmo num dia em que na sua casa de fazenda em Itaboraí (RJ) morrera uma pequena escrava. Para enterrá-la, seria necessário atestado de óbito. Macedo se dirigiu à cidade e se encontrou com um amigo, o Barão de Capanema, que lhe perguntou aonde ia. Macedo lhe contou o que ocorrera em casa, e sua atrapalhação para o enterro. -- Agora, o pior. Preciso achar um médico para o atestado. -- Um médico? – fez Capanema espantado. E sacudindo-lhe o braço: -- Aqui está um! (Ao tempo, não deveria haver registro no Conselho Regional de Medicina, penso eu.) O homem era bom em muita coisa, tanto no magistério (foi professor no Colégio Pedro II) quanto na vida acadêmica (sócio-fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), quanto ainda na política (deputado-geral). Dele conta Salvador de Mendonça, escritor de pouca nomeada, esta passagem que considero exemplar e muito própria para os dias de hoje: Professor das princesas, filhas de D. Pedro II, Joaquim Manuel de Macedo, o Dr. Macedinho, desempenhava seu mandato de deputado e foi convidado a integrar o gabinete liberal que se formava em 1864. A ele estava destinada a pasta dos Negócios Estrangeiros, hoje Relações Exteriores. Macedo recusou o convite com tal veemência, que o próprio imperador mandou chamá-lo e lhe indagou o motivo de seu gesto, quando todos reconheciam nele méritos mais que suficientes para ser um bom ministro. -- Admita-se que eu tenha as qualidades que Vossa Majestade me atribui. Mas eu não sou rico – requisito indispensável a um ministro que queira ser independente. Eu não quero sair do Ministério endividado ou ladrão! Bem diferente do modo comum de pensar de tantos atores da política de todos os tempos, parece que muito mais atentos aos conselhos cínicos que Machado de Assis põe na boca e no coração de muitos de seus personagens. Estou pensando em “Suje-se gordo”, modelar conto machadiano de Relíquias de Casa Velha, em que fica explícito o conselho: o homem fora julgado e condenado por desviar irrelevante quantia de dinheiro. Isso não se devia fazer, porque a ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar? Suje-se gordo! Ou então nos sábios conselhos dados ao filho pelo pai aproveitador da vida: -- Não tenhas idéias próprias, apega-te às frases feitas, às locuções convencionais, às fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Tudo isso e muitíssimo mais estão na “Teoria do Medalhão”, em Papéis Avulsos. Bem diferente do modo de pensar do cândido Dr. Macedo, não?
Fiquei muito preocupado com a imagem de gramático intolerante que devo ter passado ao meu prezado amigo e ex-aluno Willian Fagiolo. Em sua seção neste DEMOCRATA da semana passada, Willian torna pública a idéia de que eu o repreendi por ter conjugado errado o verbo frigir. Na verdade, foi uma espécie de fogo de encontro de que lancei mão quando, encontrando-nos na praça em dia de muito movimento de veículos, ele e Paulo Flamínio exageraram o perigo que eu, com minha idade, correria atravessando de uma calçada para outra... O Aurélio e a maioria dos gramáticos conjugam assim o presente do indicativo: eu frijo, tu freges, ele frege, nós frigimos, vós frigis, eles fregem. Willian empregou tu friges, que tem lá seus defensores, entre os quais o mais radical dos gramáticos brasileiros da velha-guarda, Napoleão Mendes de Almeida. Fique, portanto, sossegado o Willian. Se um dia em remotíssimo passado eu levava em alguma conta essas questões gramaticais por causa das exigências dos exames vestibulares (havia alunos que entravam nas melhores faculdades sem um dia sequer de cursinho), estou delas afastado há mais de vinte anos. Leio com prazer e proveito o que ele escreve, sem me preocupar com nenhum de seus aspectos formais. Já imaginou que trabalho insano eu teria se me propusesse acertar o que chega até mim através da internet? Pois apesar de tantos erros, há mensagens muito aproveitáveis, que não só passo para frente, mas também arquivo para uso posterior.
11/11/2006 |