Encontros cordiais

 

Enquanto os cento e poucos candidatos a dez vagas na Câmara Municipal e os três disputantes da Prefeitura se esfalfavam nos últimos dias da campanha eleitoral, nós, votantes facultativos e meio descrentes das promessas da temporada, tivemos duas oportunidades de praticar a amizade, a solidariedade, o convívio ameno, na semana que passou. E também de refletir sobre a finitude de homens e  de coisas.

Já se sabe que  nesta nossa São José do Rio Pardo só se formam rodas de amigos em poucos lugares: em bancos de praças públicas, em supermercados e em velórios.  Isso de pessoas se visitarem é coisa de remoto passado.

Não cultivo o salutar hábito que alguns de  meus colegas e compadres aprimoraram: assinar ponto em determinado banco de jardim ou ir ao supermercado quantas vezes forem necessárias num só dia. Nada de fazer listas imensas e comprar tudo num tranco. A beleza da coisa, segundo eles me explicaram recentemente, está  em ir ao Fonseca ou ao São João pelos motivos  mais singelos:   

- Precisa de manteiga? Pode deixar que eu vou. Não garanto que volte logo.

- Falta azeite de oliva? Não se incomode, dou um pulo ao supermercado e volto assim que puder...

Os dois encontros cordiais da semana anterior à eleição  foram, porém,  em clima de velórios, em diferentes lugares, sem nenhum desrespeito aos mortos e com toda a consideração pelos seus parentes.

No velório de uma querida colega do “Euclides da Cunha”, depois das saudações de praxe aos seus familiares, depois de se recordar esta ou aquela passagem que a envolvesse, depois de ver tantas amigas de difícil aparição pública,  era natural que nós, homens,  nos afastássemos do esquife e procurássemos manter contato com outras pessoas que também ali estavam prestando homenagens e solidariedade.

Num local discreto, formou-se naturalmente uma espécie de rodinha de pessoas sentadas,  em que estavam cinco senhores capazes de conversar em voz baixa,  controlar risos indiscretos, pacientes no ouvir e dispostos a manter  aceso o diálogo.

Primeiro assunto tratado com seriedade: como estávamos velhos!

Certo, ninguém jogou isso em rosto algum, mas era inevitável que a prosa se encaminhasse para o cálculo das idades. Um começou a somar os anos acumulados por aqueles provectos senhores. O resultado foi muito próximo a quatrocentos!

O professor de latim deu a entender que entraria com a porção maior.

- Estou com oitenta e dois, revelou com uma ponta de justo orgulho, porque depois de vida trabalhosa, o seu aspecto geral de aposentado era ótimo.

Mas, antes que ele  pudesse ter a certeza de ser o decano da turma, o diretor de escola revelou:

- Pois eu já entrei nos oitenta e três...

O professor de matemática contribuiu com setenta e oito, o antigo comerciante acrescentou seus setenta e nove . A mim só me coube  a esquecida sensação de ser o caçula em alguma coisa, com os meus setenta e seis.

O sexto personagem, meio de lado, sem integrar a rodinha, mas prestando toda a atenção àquela prosa tão diferente, deve ter ficado vexadíssimo com seus magros cinqüenta...  

Falou-se um pouco de política (não a de agora, mas a de antanho, cheia de excelsos exemplos de amor à causa pública). Ah, como o tempo aperfeiçoa os nossos companheiros – e até adversários -  que se foram!

Surgiu natural o assunto que mais nos ocupou – o futebol. Também não o futebol de agora, mesmo porque lá havia três corinthianos e três palmeirenses, contando-se o rapazinho de cinqüenta anos. Lembrou-se o futebol de tempos remotíssimos, dos anos quarenta, cinqüenta do século passado. Três do grupinho tinham jogado (e bem)  num regime que não era profissional nem amador. Arrolaram os clubes que defenderam, contaram suas gracinhas e suas decepções, umas sovas que tomaram, as vantagens que levaram, as rivalidades de clubes e de cidades. Meu compadre professor de latim não havia jogado, mas teve muito o que contar, especialmente sobre uma vez em que, vendo o Rio Pardo Futebol Clube perder por dois a zero, fora de casa,  com vinte minutos de jogo, deu-lhe nem ele sabe o quê, invadiu o campo, botou os jogadores numa roda  e soltou-lhes o verbo. Falou, falou, foi convidado pelo juiz a se retirar, mas seu pito funcionou. Placar final, 4 a 2, para o Rio Pardo... Não foram em vão suas aulas de retórica no seminário.

Eu, que jamais joguei pra valer, só pude recordar mudamente que não perdia nem treino do Rio Pardo, quanto mais jogo. Além disso, consolei-me; há fotos que comprovam sem sombra de dúvida: sob a severa vigilância de Orlando Gervásio, eu estive entre os moleques de nove ou dez anos que formaram o gramado daquele campo que tantas alegrias nos daria. Nada de placas com grama já pega. Orlando esticava um barbante e nós, de dez em dez centímetros, com um graveto ou faca, fazíamos um buraquinho na terra molhada e enfiávamos nele a tenra mudinha...

De repente, o silêncio reinou naquela improvisada assembléia, não por ausência  de novos itens, mas porque seria descortês continuarmos aquela prosa tão desenvolta, quando só faltava meia hora para o sepultamento da colega de magistério.

O outro encontro foi mais rápido  e dentro de uma igreja de bairro. Falecera uma senhora de grande prestígio comunitário, pertencente a família numerosa, com gente casada com pessoas de outras famílias numerosas. Resultado: naquela igreja lotada, quem não era parente da falecida, era parente de alguém que era parente dela. Uma das filhas, num improviso muito coerente, proferiu sentidas palavras sobre a mãe. Admirei-lhe a fluência e a precisão dos conceitos.

A fila para os cumprimentos às três filhas e ao filho da finada transformou-se num reencontro de pessoas que não se vêem com freqüência, mas nem por isso perderam o sentido do parentesco, da amizade, de um rico passado comum. Localizei umas oito primas, além de filhos e netos dessas primas. Gostei muito de conversar com senhoras que se mostraram muito amáveis, que falaram de minha mãe, de minha mulher e filhos, de meu livro recém-lançado.

Achei interessante e reveladora a aspiração de uma  das primas, na verdade filha de uma prima. Residente e bem-sucedida profissionalmente numa grande cidade do Paraná, seu sonho legítimo, não sei se simples e possível, era voltar a morar em Divinolândia.

Tive confirmação de um boato que me chegou aos ouvidos há poucos dias. Havendo falecido em São Paulo um sobrinho de minha mulher, alguém achou melhor simplificar a notícia e me matar. Isso mesmo, pela segunda vez em quatro meses, correu pela cidade que eu havia entregado a alma ao Criador! Outra prima, das mais velhas, quando soube da notícia, esta semana,  teve vontade de telefonar aqui para casa, para se informar. Disse-me ela:

- No entanto, antes que conseguisse, vi você na praça, todo lampeiro...

Antes isso, antes isso.

Quanta coisa me disseram! Uma prima de minhas primas disse ter nítida a lembrança de me ver passando, com uniforme de ginasiano, pela porta de sua casa, aqui na Várzea. Eu não tive tempo de lhe dizer, mas também me lembro dela com um inesquecível uniforme –  blusa branca, saia e gravata bordôs, de aluna da Escola Normal Livre de São José do Rio Pardo, que funcionou até 1947 no casarão do Artese, agora em vias de radical tombamento, ou seja, vai ser demolido.

Desço a feroz rampa da igreja com outra prima, que me fala sem rancor da dura vida que leva, cuidando de filho hemiplégico há mais de vinte anos, e agora tendo de assumir a educação de dois netos pequenos, vítimas de  um casamento unilateralmente desfeito.

Já se vê que nem tudo são maravilhas, mas colho desses dois acontecimentos comunitários a boa certeza de que as vidas têm ritmo peculiar, com alegrias e tristezas próprias, independentemente de eleições e de crises que se abatem sobre nosso pobre mundo.

 

 

11/10/2008
(emelauria@uol.com.br)

 

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