Estão todos bem

 

Se lhe pesarem nas costas mais de setenta aninhos;  se você for pai de uns três ou quatro ou cinco filhos que se espalharam por este mundo de Deus; se  tem um vago desejo de fazer-lhes uma visita para saber como vão as coisas na vida de cada um, - pense muito, e antes veja o filme italiano Estão todos bem (Stanno tutti bene),de Giuseppe Tornatore, com Marcello Mastroiani.

Encontrável  nas locadoras, de vez em quando ressurge, sem mais nem menos, no canal 65 – Telecine Cult – da Sky, e você,  uma vez começando a vê-lo, terá dificuldade em se livrar dele. E aí, então, você não sairá incólume, por menos que os  dissabores de Mastroiani  possam  lembrar-lhe alguma coisa levemente parecida na sua vida cotidiana.

A personagem de Mastroiani (Matteo) é um bem-disposto senhor beirando os oitenta, viúvo, aposentado como escrivão do registro civil.  Sai de sua cidadezinha na Sicília com o propósito de visitar as duas filhas e os três filhos, todos moradores de grandes cidades da Itália continental. Filhos que deveriam ter ido ao aniversário do pai, mas nenhum compareceu, alegando motivos dos mais variados.

 

Particularidades:

1.       Ele acha que tem sido  bom pai, bom marido e que todos os filhos guardam ótimas recordações dele, da casa, da infância, de seus conselhos e ordens.

2.       Como escrevente do registro civil, julga-se responsável pelo nascimento de umas trinta e cinco mil pessoas, durante seus muitos anos de ofício.

3.       Quer chegar de surpresa à casa de cada um dos filhos, que voltam muito raramente ao lar paterno, para os apanhar na autenticidade de seus cotidianos.

4.       Viaja de trem, para satisfazer em parte o sonho infantil de ser maquinista.

5.       Os nomes dos filhos foram retirados de personagens  famosas de óperas italianas, das quais ele é admirador entusiasmado. (Tosca, Norma, Canio, Guglielmo, Alvaro).

6.       Usa grossíssimas lentes, daquelas que mais parecem fundos de garrafa, como a querer sempre nos lembrar que sua visão de todas as coisas é sujeita a profundas distorções.

Sua primeira parada é Roma, para visitar Tosca, a sua menininha de grande vocação artística, destinada, sem dúvida, a um futuro brilhante no teatro, no cinema, na TV...

Delicada e bela Tosca. Recebe generosamente o pai e lamenta não dispor de muito tempo para ele, pois os dias todos são tomados por ensaios e mais ensaios.

Realidade: o amplo apartamento, o belo carro não são dela e sim do namorado, que os pede de volta, uma vez que estão rompidos os dois. Os ensaios não são de nenhum clássico, mas sessões de comerciais de lingerie, com possibilidades de oferecer a cada figurante uma pontinha em filme pornô, rodado no vizinho estúdio. Aquele menino tão interessante que ela impingiu ao pai como filho de uma amiga, na verdade é dela...

Feliz da vida, feliz com os falsos sinais da felicidade da filha,  Mastroiani deixa Roma e vai a Milão, onde mora outro filho (Canio) de grandes dotes artísticos, na infalível avaliação do pai. Com certeza, tem lugar de realce na orquestra do Teatro Scala.

Realidade: o filho foi avisado pela irmã da vinda do pai. Espera-o por vários dias em vão. Quando o pai chega, está quase na hora de ele seguir viagem para Londres, com a orquestra sinfônica em que toca. Tocar não é bem a palavra: ele bate bumbo na orquestra!

E por que teria Mastroiani demorado tanto para chegar a Milão? Porque lhe acontece uma das melhores coisas não da viagem, mas da vida toda: seu encontro com a grande Michèle Morgan, velha senhora integrante de um grupo  de turistas de terceira idade. Ele a acompanha durante alguns dias e passa com ela belos momentos de um feliz e assexuado relacionamento. Visitam lugares, comem bem, dançam, trocam confidências. Ela confessa: se dependesse dos filhos, estaria confinada a um asilo. Não vai atrás das opiniões deles e viaja, viaja,  reencontrada a alegria de viver. E dá ao eventual companheiro de um trecho de viagem o grande conselho: não se deixe influenciar pelos filhos, não more com nenhum deles, mantenha  a sua autonomia de vida e de opiniões.  O grupo de velhos turistas visita Rimini, a terra natal de Federico Fellini. Aí Tornatore homenageia o mestre, levando seus velhos a visitar a praia de grande importância no imortal filme Amarcord, ao som de fundo musical rememorativo...  Quem está por dentro entenderá o tributo e as referências. A quem não está, não adianta explicar.

A cena da despedida de ambos é de correta simplicidade e sem palavras inúteis. Enquanto  os companheiros de viagem dela observam de dentro do ônibus, ele, respeitosamente, vive o   duro adeus para sempre, resumido num solene beijo na mão da grande dama.

A outra filha (Norma) também é ocupadíssima. Leva o pai até a frente do prédio onde trabalha. Despede-se dele carinhosamente e entra pela porta privativa dos executivos. Assim que se vê longe das vistas do velho,  refaz seu rumo, assina o ponto (está atrasada!) e se aloja no triste local de seu enfadonho trabalho: receptora e redatora de telegramas fonados...

Guiglielmo quase não aparece. Há um diálogo entre ele e outro homem, sugerindo o tipo de segredo que ele quer, por todos os meios, esconder do pai, tão moralista.

Mais um filho visitado (Canio) e mais todo um complicado jogo de aparências: casal feliz, filho feliz. Um dos momentos mais tocantes do filme é o longo diálogo de avô e neto. O avô percebe que o jovem deve estar com um problema dos muito grandes. Acaba sabendo que o rapazote engravidou a primeira namorada e não sabe o que fazer, porque nunca se encontra com os pais. O diálogo entre avô e neto é fluente, o avô sempre preocupado em dar conselhos ao neto. Lembrei-me de frase do outrora célebre escritor italiano Pitigrilli: “Não me dê conselhos, sei errar sozinho”.  O neto presenteia o avô com um espetáculo luminoso de muitos vaga-lumes, tendo como fundo o Duomo de Milão. Perfeita obra da inventiva tecnologia do rapaz...

Tudo decorreria na santa paz dos fingimentos, se Mastroiani não tivesse tido um pesadelo daqueles. Acordado no meio da noite, assustado, pode ouvir o diálogo de marido e mulher, no quarto ao lado. Estão separados há muito tempo, nada mais têm em comum, nada sabem da vida do filho. Não veem a hora  de o velho ir embora, para cada um voltar à vida normal.

Mastroiani não suporta o duro golpe de saber que o filho não vive bem e que todos eles sentem dificuldade em tê-lo por perto, porque ele atrapalha o ritmo diário de cada um, suas ideias são ultrapassadas,  ele continua achando que manda no destino deles – e por aí a fora. Foge da casa do filho, perde-se na cidade grande, é internado num hospital...

Só assim lhe é possível ver juntos quatro dos cinco filhos, rodeando-lhe o leito de enfermo... Do quinto (Alvaro) ninguém lhe dá notícias, talvez esteja até morto, - hipótese firmemente rechaçada por ele.

Fracassadas todas as tentativas de rever os filhos em torno de uma mesa de refeições,  Mastroiani regressa ao seu vilarejo e vai dar notícias deles à mulher. Claro, no cemitério. Ele faz um relato circunstanciado do que transcorreu bem na viagem e omite da finada qualquer dos muitos incidentes desagradáveis que viveu. Beija-lhe  com fervor a fotografia do túmulo, como se ela estivesse mesmo por ali, e diz-lhe que os filhos estão todos bem e lhe mandam muitas lembranças...

 

***

 

Releio este meu relato e percebo quanta coisa ficou faltando, quanto detalhe foi omitido. Não quero ser um condensador do filme. Quero, isto sim,  extrair dele a grande lição, ou, ao menos, o nítido aviso de amplo espectro.

Pai amoroso, dedicado, sempre participante na vida familiar. Enérgico demais, diz uma das filhas. Intimidava  as crianças, que aprenderam a difícil arte do jogo do contente e de fingirem concordar com o maior defeito do pai: ele fez de cada um das filhos uma espécie de realizador de projetos e sonhos que eram só dele. Forçou vocações, não respeitou individualidades, não permitiu que cada um descobrisse e percorresse seus próprios caminhos. Nunca lhe passou pela cabeça que vocações se frustram, anseios se transformam, amores se esboroam.

Não entendeu, em resumo, a simbólica historinha que sempre repetia aos filhos: a de um sujeito que ficou rico produzindo e vendendo vinho. No leito de morte, chama-os todos e lhes conta um grande segredo:

- Meus filhos, agora que vou morrer, é preciso que vocês  saibam que vinho  também se faz com uvas...

Ou seja, a vida pode ter autenticidade, não precisa ser obrigatoriamente uma contrafação consentida.

 

11/09/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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