Gente lá de cima

  
Daqui do alto.

Nunca fui frequentador das antessalas e salas do Poder, tomada esta palavra como síntese do que possa advir do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

Guardo, por isso, poucas lembranças de contatos feitos com figurões que poderiam, querendo, prestar algum favorzinho a uma escola, a uma comunidade, a uma região.

Imagem positiva ficou-me de um militar, coronel, responsável por um cargo então novo - a Coordenadoria da  Defesa Civil do Estado de São Paulo, instalada no próprio palácio dos Bandeirantes.

Fomos  a ele por causa daquela formidável enchente de 19 de janeiro de 1977. Celso Amato, recém-empossado prefeito, e eu, novinho em folha como presidente da Câmara, batemos a São Paulo em busca de recursos para a reconstrução das tantas pontes que as águas do rio Pardo e seus afluentes haviam destruído em manhã de nenhum presságio. Não guardei nem quanto pedimos, nem quanto recebemos - também já se vão trinta e seis anos. Sei que com a verba depois liberada, a Prefeitura praticamente  refez não só as pontes, mas o sistema viário do município. Guardei, isto sim, a figura afável e compreensiva do coronel, com certeza afeito a toda sorte de dificuldades enfrentadas pelos municípios paulistas, mas nem por isso capaz de um gesto de impaciência ou de palavra menos polida  a seus momentâneos interlocutores,  preocupados exclusivamente com o problema de São José do Rio Pardo e sem a mínima noção dos outros tantos casos levados à sua consideração só naquele dia.

*

Mais recentemente, coisa de uns dois anos, fui testemunha de um ato de profunda  riqueza humana de um político nordestino de há muito radicado em São Paulo. É que Aldo Rebelo esteve aqui na cidade, em missão em nada relacionada com seu atual cargo de ministro do Esporte. Aldo Rebelo, incomum mistura de alagoano, comunista, devoto de Nossa Senhora Aparecida e palmeirense roxo.

Estávamos conversando lá no Recanto Euclidiano quando Aldo pediu licença para fazer uma ligação telefônica local e de caráter particular. Ninguém imaginaria a quem: a Richard Petrocelli, uma de suas admirações futebolísticas. Sim, ao Ríchard, aquele elegante jogador de futebol que saiu do Rio Pardo F. C. e foi contratado pelo Palmeiras, onde em breve período de permanência, há mais de sessenta anos,  criou justa fama que o acompanhou até a morte recente. Aldo falou com ele com o respeito e a admiração que  os fãs devotam a seus ídolos. O velho esportista e meu colega de  ginásio bem o mereceu.

*

Imagem negativa, mesmo, construiu um político ainda hoje atuante, embora em franca decadência. Dependia dele, da assinatura dele, a liberação de vultosa verba destinada ao asfaltamento de pequeno trecho de rodovia de muito interesse não só de São José do Rio Pardo, mas de cidades próximas. O tal político, então secretário dos Transportes, ia deixar o cargo a tempo de se desincompatibilizar  para concorrer a cargo eletivo. Combinara com o prefeito Lupércio Torres que seu último ato como secretário seria assinar com pompa e circunstância a tal liberação de verbas. Por isso, fomos a São Paulo, todos engravatados e solenes, na certeza de que haveríamos de arrancar daquele político (um bagre ensaboado, de tão liso em sua demagogia) a nossa estradinha asfaltada de tanta serventia. Depois de horas de espera, na sede da Secretaria, eis que chega todo falante e com ares de magnânimo o secretário. Ao ver Lupércio, só lhe faltou esmagá-lo de abraços. De memória famosa, sabia nossos nomes todos e nos tratou com familiaridade de constranger. Antes que lhe fizessem qualquer cobrança, foi confessando:

- Querido Lupércio, prezados amigos de São José. Por uma dessas trapalhadas próprias dos períodos de despedidas de um cargo, eu ESQUECI em Campinas a papelada toda referente à estrada de vocês. Desculpem-me, eu lhes peço, mas hoje não será possível assinar coisa alguma. Entrarei em contato imediato  com meu sucessor e desde já lhes asseguro que o mais tardar na próxima semana tudo estará resolvido.

Lupércio, não sei se pálido ou roxo de raiva, deu todos os sinais de seu descontentamento. O secretário, cobra criada nas artimanhas da política demagógica, alisou-nos quanto pôde. Até hoje a tal estradinha - o caminho mais curto para Divinolândia - é de terra batida e de ruim conservação. Em alguns mapas figura como asfaltada.

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Mais que positiva, verdadeiramente encantadora,  a imagem construída por um tal Dr. Carvalho.  O ambiente era o formal e quase luxuoso de alta repartição, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, ali no comecinho da Avenida Rangel Pestana. Queria-se, precisava-se falar com o Dr. Fulano, mas exatamente naquele dia o Dr. Fulano gozava de seus primeiros momentos de merecidas férias, sempre adiadas por necessidade de serviço - esclarece-nos o prestante oficial de gabinete.

- Querem ser recebidos pelo Dr. Carvalho?

(O prestante oficial de gabinete informou-nos em tom quase sigiloso que o Dr. Carvalho era o substituto natural do Dr. Fulano.)

Que adiantaria falar com o substituto, se mesmo o titular teria dificuldade em nos atender satisfatoriamente? Em todo caso, acenou-se que sim.

Daí a alguns minutos, está-se frente a um Dr. Carvalho bem-humorado, cordial, dizendo-se desde logo rio-pardense.

- Não diga!

- Digo e com orgulho. Nasci e fui criado em São José do Rio Pardo, numa fazenda. Meu pai fez... Meu avô aconteceu... Um tio meu realizou... E afluíram passagens singelas da meninice, de um pomar de seis alqueires, dos vinte e cinco quilômetros a cavalo para vir à cidade, de uns primos completamente travessos.

Nem precisamos dar corda ao Dr. Carvalho. De início não perguntou de ninguém ou de nada. Lá no fundo de seu coração foi renascendo o menino ocultado nas regiões mais amenas da memória. E ali mesmo, no formalismo e quietude da alta repartição, o menino falou pela voz do homem, galopou na estradinha da Vila Costina, tomou banho de cascata, fertilizou a aridez da hora presente com lembranças nítidas. Bem que uma vez ou outra ("Eu sou um homem ocupado, só penso em coisas sérias" - tal qual o personagem do Pequeno Príncipe) o burocrata tentou dominar o inesperado menino que vivia intocado, oculto mas alerta nas profundezas morais do Dr. Carvalho. Então ressurgia momentâneo e a contragosto o servidor público que fornece informações precisas e toma conhecimento dos mil problemas dos outros. E o menino repontava logo mais adiante e se evidenciava nos gestos calmos, no brilho do olhar introspectivo do Dr. Carvalho, que então perguntou por tantos amigos, que retomou tantas coisas interrompidas havia quarenta anos, que se interessava por tantos lugares  fixados nas suas retinas de menino, que se abisma todo na recomposta paisagem interior.

Com emocionada estima na voz, falou de um senhor que fora administrador de uma das fazendas do pai, entre São Sebastião da Grama e Poços de Caldas. Por uma dessas casualidades que tornam o quotidiano tão cheio de surpresas, eu conheci e muito estimei esse senhor. Era Bernardino Bertero, pai de outro Bernardino, casado com minha prima Dinah Bianchin. Pai também de meu contemporâneo de ginásio, o Maurício, amigo da vida toda. Não poucas vezes fui com ele à tal fazenda -  o Córrego Fundo, de grata memória para mim.

Nem se chocou o Dr. Carvalho quando soube por mim, naquele exato momento, da morte do velho Bernardino. É que na memória do Dr. Carvalho já estava congelada a imagem do amável administrador, inalcançável, portanto, por qualquer acontecimento posterior. Para o Dr. Carvalho aquele velho, que eu também conheci e estimei, nunca poderá morrer, enquanto existir o menino que se  esconde na alma do atarefado, requintado e cortês Dr. Carvalho, rio-pardense com muita honra.

Produtiva toda aquela conversa com o afável Dr. Carvalho? Nem me lembro. O que me ficou foi a face humaníssima de um burocrata por breve momento transfigurado em cultor de boas memórias, de feliz retorno ao melhor de sua humanidade.

Razão tem, mesmo, o velho Machado: o menino é o pai do homem.

 

04/05/2013
emelauria@uol.com.br

 

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