Nas garras da tecnologia
- Como? Você não tem telefone celular? - Não tenho – respondi meio envergonhado, ante a ruidosa reprimenda de meu amigo um pouco mais velho, porém atualizadíssimo com as conquistas da ciência – isso já vai para uns dez anos. Não se concebe alguém, de alguma cultura e de certo relacionamento social, que ainda não usufrua dessa maravilhosa invenção do mundo contemporâneo! Enquanto meu amigo dissertava empolgado sobre o que era então a última palavra em matéria de adesão à modernidade, eu ia relembrando a importância crescente que a telefonia fora adquirindo nas vidas de cada um. Meu avô materno, César Bertocco, foi dos primeiros a adquirir, há cerca de cem anos, um daqueles vistosos aparelhos de madeira, fixado à parede, bocal saliente de metal cromado, fone enganchado de tal modo em seu descanso, que quando era dali retirado, já se sabia que era para se pedir uma ligação à telefonista.. Quem não tiver certa idade jamais compreenderá o solene ato que era rodar a manivela, ouvir o pronto da telefonista e lhe passar, com educação e cortesia, ou um número ou o nome do proprietário do telefone com quem se queria falar. Também você, que tem certa idade, não entendeu como se telefonava? Então vamos por partes: Era raríssima a casa particular que tivesse necessidade de mandar instalar um telefone, coisa muito cara. Possuía-o quem tocasse algum comércio, alguma atividade que dependesse de troca de informações. Meu avô tinha um armazém de secos e molhados (já ouviu falar nisso?) lá no Buracão. Seu telefone que eu conheci em menino era um vistoso Kellog, alimentado por duas enormes pilhas bem visíveis. Seu número: 106, que se dizia um-zero-meia dúzia, para não haver enganos na audição, ainda precária. - Pronto! Aqui é da casa de César Bertocco, telefone um-zero-meia dúzia, e aí, quem está no aparelho? Creio que ninguém por ali, num raio de trezentos metros, possuía telefone. Isso queria dizer que o aparelho 106 muitas vezes há de ter prestado relevantes serviços comunitários. Quem havia feito a ligação? Alguém acionara, girando a manivela, a central telefônica e pedira à telefonista em serviço que ligasse o seu telefone com o de número 106. A telefonista tomava o que hoje se chama um plugue e enfiava seu pino num orifício correspondente ao número solicitado. Se a hora não fosse de muitos pedidos ao mesmo tempo, ela podia ouvir com nitidez o que as duas pessoas diziam entre si. Ou seja: ninguém numa pequena cidade era mais bem informado do que uma telefonista em serviço... Se a ligação era interurbana, a demora podia ser de cinco, seis horas. Ou até de dias, quando temporais derrubavam postes com os fios telefônicos. Cheguei a ver em ação as derradeiras mesas manuais dos Irmãos Camargo, funcionando num sobradinho da Rua Francisco Glicério, logo abaixo da atual estação da Telefonica . Dois dos Camargos, Henrique e Roberto (este bom amigo recentemente falecido), deixaram-me ver como era a precariedade do serviço, com aquela barafunda de fios emaranhados, exatamente no dia em que eu assinava o contrato de aquisição de um número dos primeiros telefones automáticos da cidade. Era um salto tecnológico notável: eu saía do 640 manual para o moderníssimo 3-755, de discar. Demorou a chegar a São José a maravilha do celular, de preço exorbitante. Quem pôde, logo o comprou, embora ele não conseguisse falar e/ou ser ouvido em muitos lugares. Era preciso direcionar sua pequena antena para uma torre repetidora. Nas baixadas ele falhava; se o tempo estivesse carregado, ele captava as estáticas; muitas vezes saía do ar, sem essas nem aquelas. Mas era uma glória ser pioneiro na posse e propriedade de um celular, novo sinal de status social. Como houve exibicionistas! Homens e mulheres de repente paravam na rua, digitavam uns números (ou fingiam fazê-lo) e, com fisionomia carregada, como se estivessem decidindo o destino do planeta, ficavam uns minutos ali, causando inveja e despeito. Um filme italiano, dos mais críticos que já vi, mostra uma mulher falando exaltadamente com ninguém ao celular num clube da pequena cidade, em lição explícita de cabotinice. Quem viu o triste Parente é serpente deve se lembrar da cena. Hoje é o que se vê. Todo o mundo tem celular e por certo tempo gosta de exibi-lo, embora não poucas vezes o seu aparelho mereça o espirituosíssimo apelido de pai-de-santo, isto é, só recebe mensagens... Não se gasta nada assim, ouvi dizer. Acabei comprando meu celular há menos de sete anos. Aparelhinho ajeitado, cômodo, que era apenas telefone. Sim, porque já havia disponíveis uns instrumentos sofisticados que, além de falar e de ouvir, tiravam fotos. Contentei-me com discreto e caro LG, que cumpriu muito bem as variadas tarefas que lhe couberam nestes tempos todos. Pois um dia destes, já no mês de abril, meu guru informático instigou-me a substituir meu discreto LG (que sempre chamei de vossa excelência, por não dominar nem metade de seus recursos) por um Vaio que deve fazer coisas do arco-da-velha. Eu ainda nem sei bem como usá-lo na sua comezinha função de falar e de ouvir. Meu guru apronta coisas incríveis com ele, fica entusiasmado com sua versatilidade de transmissor/receptor de voz, aparelho de TV, rádio FM, máquina fotográfica e sei lá que mais. Meu filho do meio, também chegadinho a essas novidades da tecnologia, admirou-o muito. Um jovem técnico que cuida das crises de computadores, um dia destes esqueceu-se da hora, de seus outros compromissos de atendimento e se perdeu descobrindo os recursos da maquininha que, com certeza, daqui a seis meses já estará completamente superada. Só pra atiçar algum leitor também fissurado nessas novidades tecnológicas, reproduzo cuidadosamente (sem entender bolhufas) o que está prometido em sua pequena e enigmática embalagem: TV Function FM Function Dual cards & Dual Standby and Dual Bluetooth Dual_Core (Dual_CPU) Super 3D stereo dual speakers 5M pixel dual camera Guard against theft Incall firewire Message firewall QVGA 3.0 & 260K color screen Super-long standby Support T – Flash memory expansion MP3/MP4 player Incoming display Support multi-languages. Para mim, ele precisa apenas enviar e receber mensagens faladas e me permitir, de vez em quando, sacar umas fotos se algo incomum ou belo se mostrar improvisamente por aí. Ficarei contente se souber aprender logo a diferença de lidar com um assunto fotografável que esteja ou à minha frente ou nas minhas costas. Sim, porque já me explicaram que este notável produto do avanço tecnológico me permite isso: dependendo da lente que eu convocar, fotografo o que eu vejo ou o que não vejo. Observação pertinente: este modernoso Vaio custou em 2009 muito menos reais do que o discreto LG há sete anos. Coisas do mundo globalizado.
11/04/2009
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