Encontros amistosos

 

 

Não cultivo o salutar hábito que alguns de  meus colegas e compadres aprimoraram: ir ao supermercado quantas vezes forem necessárias num só dia.  A beleza da coisa, segundo eles me explicaram recentemente, está  em ir a esses templos do consumo pelos motivos  mais singelos:   

- Precisa de manteiga? Pode deixar que eu vou. Não garanto que volte logo.

- Falta azeite de oliva? Não se incomode, dou um pulo ao supermercado e volto assim que puder...

Os dois encontros amistosos da semana deram-se em clima de velórios, em diferentes lugares, sem nenhum desrespeito aos mortos.

No velório de uma querida colega de magistério, depois das saudações de praxe, era natural que nós, homens,  nos afastássemos do esquife e procurássemos manter contato com outras pessoas que também ali estavam prestando homenagens e solidariedade.

Num local discreto, formou-se  uma espécie de rodinha de pessoas sentadas, em que estavam cinco senhores capazes de conversar em voz baixa,  controlar risos indiscretos, pacientes no ouvir e dispostos a manter  aceso o diálogo.

Primeiro assunto tratado com seriedade : como estávamos velhos!

Certo, ninguém jogou isso em rosto algum, mas era inevitável que a prosa se encaminhasse para o cálculo das idades. Um começou a somar os anos acumulados por aqueles provectos senhores. O resultado foi muito próximo a quatrocentos e cinquenta!

O professor de línguas deu a entender que entraria com a porção maior.

- Estou com noventa, revelou com uma ponta de justo orgulho.

Mas, antes que ele  pudesse ter a certeza de ser o decano da turma, o diretor de escola revelou:

- Pois eu já entrei nos noventa e um...

O matemático contribuiu com oitenta e seis, o antigo comerciante acrescentou seus oitenta e oito. A mim só me coube  a esquecida sensação de ser o caçula em alguma coisa, com os meus oitenta e cinco por fazer.

O sexto personagem, meio de lado, sem integrar a rodinha, mas prestando toda a atenção àquela prosa tão diferente, deve ter ficado vexadíssimo com seus magros sessenta.  

Surgiu natural o assunto que mais nos ocupou – o futebol. Também não o futebol de agora, mas dos meados do século passado. Três do grupinho tinham jogado (e bem)  num regime que não era profissional nem amador. Arrolaram os clubes que defenderam, contaram suas gracinhas e  decepções, umas sovas que tomaram, as vantagens que levaram, as rivalidades de clubes e de cidades.

Eu, que jamais joguei pra valer, só pude recordar mudamente que não perdia nem treino do Rio Pardo, quanto mais jogo. Além disso, consolei-me; há fotos que comprovam sem sombra de dúvida:  eu estive entre os moleques de nove ou dez anos que formaram o gramado daquele campo que tantas alegrias nos daria. Nada de placas com grama já pega. Alguém esticava um barbante e nós, de dez em dez centímetros, com um graveto ou faca, fazíamos um buraquinho na terra molhada e enfiávamos nele a tenra mudinha...

O outro encontro foi mais rápido  e dentro de uma igreja de bairro. Falecera uma senhora de grande prestígio comunitário, pertencente a família numerosa, com gente casada com pessoas de outras famílias numerosas. Resultado:  quem não era parente da falecida, era parente de alguém que era parente dela.

A fila para os cumprimentos às três filhas e ao filho da finada transformou-se num reencontro de pessoas que não se veem com frequência, mas nem por isso perderam o sentido do parentesco, da amizade. Localizei umas oito primas, além de filhos e netos dessas primas. Gostei muito de conversar com senhoras que se mostraram muito amáveis, que falaram de minha gente, de  meus livros.

Tive confirmação de um boato que me chegou aos ouvidos há poucos dias. Havendo falecido em São Paulo um longínquo parente nosso, alguém achou melhor simplificar a notícia e me matar. Isso mesmo, pela segunda vez em  meses, correu  que eu havia entregado a alma ao Criador! Outra prima, das mais velhas, quando soube da notícia, esta semana,  teve vontade de telefonar aqui para casa, para se informar. Disse-me ela:

- No entanto, antes que conseguisse, vi você na praça, todo lampeiro...

- Antes isso, antes isso.

Quanta coisa me disseram! Uma prima de minhas primas disse ter nítida a lembrança de me ver passando, com uniforme de ginasiano, pela porta de sua casa, aqui na Várzea. Eu não tive tempo de lhe dizer, mas também me lembro dela com um inesquecível uniforme –  blusa branca, saia e gravata bordôs, de aluna da Escola Normal Livre de São José do Rio Pardo, que funcionou até 1947 no casarão do Artese, agora restaurado em toda a sua estranha mistura de estilos.

Já se vê que nem tudo são maravilhas, mas colho desses dois acontecimentos comunitários a boa certeza de que as vidas têm ritmo peculiar, com alegrias e tristezas próprias, independentemente de  crises que se abatem sobre nosso pobre mundo.

 

11/02/2017
emelauria@uol.com.br

Voltar