MAQUIANDO CASOS ALHEIOS

 
Remanescentes da turma de 1949 da Escola Normal Euclides da Cunha
 comemoraram em dezembro, na Stufa, os 62 anos de formatura.
Lourdinha, Zulmar, Nicinha, Guilherme, Netinho e Márcio.
(Foto Márcia Longo de Araujo)

 

Quem navega  sabe como é: de repente aparece um texto curto, mas inteligente, nem sempre expresso em linguagem aceitável. Entre deletar e lhe dar um  trato, balança o nosso coração.

Agora resolvo maquiar alguns deles e repô-los em circulação, principalmente quando  revelam  visões incomuns  de fatos corriqueiros.

Aí vão uns  exemplares dessa literatura anônima,concisa, experimentada e  espirituosa.

 

Exame médico

Depois  de acurada observação ao espelho, a distinta senhora decidiu-se: iria ao médico naquele mesmo dia.

No caminho foi alinhavando seu discurso, que ficou assim de viva voz:

- Doutor, estou aqui porque notei com preocupação que meus cabelos estão secos e quebradiços; meus olhos sem brilho; minha pele rugosa e sem elasticidade; meus braços flácidos e minhas mãos encarquilhadas. O que é que o senhor acha disso tudo?

- Garanto-lhe que a senhora não tem problema algum de visão, resumiu o atento  facultativo.

 

Constância

Para alcançar o conhecimento, acrescente coisas todos os dias. Para alcançar a sabedoria, remova coisas todos os dias – receita de filosofia oriental, com ramificações por muitos lugares e muitas épocas.

 

Com toda a certeza

Dois caçadores caminham pela floresta. Súbito, um deles vai ao chão, espumando e revirando os olhos, parecendo ter muita dificuldade em respirar.

Seu companheiro, sem saber o que fazer, toma o celular e consegue comunicar-se com um serviço de emergência dos guardas florestais.

- Seu guarda, estou aqui sozinho no meio do mato e meu amigo morreu.

- Morreu mesmo?

-  Não tenho certeza absoluta, mas parece que sim!

-  Mantenha a calma, meu senhor. A primeira coisa que deve fazer  é ter certeza de que ele está morto...

Segue-se um pesado e longo silêncio, só quebrado pelo barulho de um estampido.

- Seu guarda, e agora, o que é que eu faço?

 

Falta de estrutura

O fim do mundo, previsto para dezembro de 2012, está desde logo suspenso no Brasil.

Chegou-se à óbvia conclusão de que o país não tem estrutura para suportar evento dessa magnitude.

 

Elementar, meu caro

Depois de resolver o terrível problema do cão dos Baskervilles, o insigne detetive Sherlock Holmes resolve convidar o inseparável amigo Dr. Watson para um programa incomum: acampar por breve período. Dirigem-se a um bosque relativamente próximo, armam a barraca, tomam uma refeição adequada à ocasião e consomem com vagares uma garrafa de bom vinho tinto. Já dentro dos respectivos sacos de dormir, ainda conversam mais um pouquinho, até caírem no sono.

Algumas horas depois, Holmes acorda, acende o cachimbo e sacode o amigo:

- Watson, olhe para o céu estrelado. O que você deduz disso?

O médico, sabedor dos complicados processos de raciocínio do implacável decifrador de mistérios, resolve mostrar um pouco de erudição:

- Bem, astronomicamente, estimo que existam milhões de galáxias e potencialmente bilhões de planetas como a Terra. Astrologicamente posso assegurar que Saturno está em Câncer. É de supor-se ainda, pela posição das estrelas no firmamento,  que são três horas e poucos minutos da madrugada. Se você me der mais algum tempo de alinhar outras considerações, chegarei a outras deduções com aceitável base lógica. Ou você já está satisfeito com que explanei até aqui?

- Watson, Watson... Você envelhece e continua o mesmo idiota de sempre. Não dá pra perceber que alguém roubou a nossa barraca?

 

Nunca mais

Você sabe que nunca mais encontrará quem lhe inspire uma paixão. Você sabe, não é fácil amar alguém. É preciso ter energia, generosidade e cegueira.

Há até um momento, bem no início, em que é preciso saltar um precipício:  quem refletir não o fará.

Você sabe que nunca mais o saltará, ainda que seja só por comodismo.

 

Acompanhante

Cremilda. Sou uma mulher séria, carente, carinhosa e quero me casar. Procuro homem solteiro, com mais de 65 anos e com sérios problemas de saúde.

 

Oportunidade

Olhe para a pessoa que lhe causa aborrecimento e tire proveito da oportunidade de controlar a  própria ira e desenvolver a compaixão.

 

Sentida homenagem póstuma

Era um daqueles cinematográficos campos de golfe num lugar qualquer, daqueles muito ricos,  tão comuns nos Estados Unidos. Um dos participantes, inteiramente voltado ao jogo, tem um procedimento inesperado: enquanto se preparava para uma tacada de grande dificuldade técnica e muito importante no resultado final da partida, observou  na estrada que margeava o campo um longo cortejo funerário, limusines reluzentes às dezenas. Interrompeu mesmo aquele difícil galeio que o corpo do golfista precisa dar antes de impulsionar com o taco aquela quase invisível bolinha. Empertigou-se, tirou o boné, fechou os olhos e recitou uma prece que soou comovente aos ouvidos dos demais circunstantes. Seu adversário naquela partida não teve como não comentar o inusitado daquele momento:

- Muito cristão o seu procedimento. Interromper uma tacada e voltar seu pensamento e suas orações para alguém que vai ser sepultado... Confesso que seu gesto me tocou profundamente.

- É isso, meu caro. Era o mínimo que eu podia fazer pela falecida. Afinal, nós estávamos casados havia já trinta e cinco anos.

 

Leitura

Você lê e sofre. Você lê e ri. Você lê e engasga. Você lê e tem arrepios. Você lê e sua vida vai se misturando no que está sendo lido.

 

Caindo na real

Em Recife,  professoras universitárias, certamente decepcionadas com a falta de interesse dos alunos no exame de questões transcendentais da filosofia, da ciência e da arte, fundaram um bloco carnavalesco com justificadíssimo título: CANSEI DE SER PROFUNDA!

 

Respeito filial

O bêbado pela enésima vez chama o barman e lhe diz em  altos brados:

- Você precisa saber que eu já dormi com sua mãe. Já dormi com ela. Já dormi...

A surpresa da insistente revelação e a calma do ofendido até irritavam algumas pessoas presentes à chocante cena.

Num dado momento, o barman toma carinhosamente o braço do bêbado e lhe diz com delicadeza e respeito:

- Está na hora de ir para casa, papai.

 

Menos barulho

Às vezes é preciso diminuir a barulheira, parar de fazer perguntas, parar de imaginar respostas, aquietar um pouco a vida para simplesmente deixar o coração nos contar o que sabe.

E ele conta, com a calma e clareza que tem.

            

 

11/02/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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