Meu amigo Rodolpho

 

 
Rodolpho, Francisco Marins e eu no recebimento do
Diploma de Mérito Euclidiano (2007)

 

Vista agora, que chegou ao fim, a longa e proveitosa vida de Rodolpho José Del Guerra teve fases distintas que produziram diferentes frutos.

Infância de família pobre, com vida dificultosa, e uma influência salutar, duradoura: a  de João Campos e Olga Pourrat, donos da então Tipografia Ideal e pais de Maria José, ainda hoje com plena lucidez na força dos noventa e quatro anos.

Com essas amizades e com esse proveitoso convívio, o menino Rodolpho, desde os sete anos, aprendeu a mexer com coisas, a ver livros, cadernos, brinquedos do estoque da loja, de tal forma que um estabelecimento comercial adquiriu para ele significados e encantos que jamais se perderam.

Terminado o curso primário, lá se foi Rodolpho  ingressar no ginásio, o Euclides da Cunha, único na cidade.

Depois  do ginasial, a continuidade possível na cidade era a Escola Normal, destinada a formar professores para as séries iniciais do grupo escolar, ensino público. Terminado o curso de três anos,  viveu Rodolpho um momento crucial – a decisão  de prestar  concurso para professor de Trabalhos Manuais nos ginásios estaduais.

Eu, que  pouco tempo depois de Rodolpho vivi as mesmas angústias para ingressar no magistério secundário, senti a dureza desses concursos, não só pela extensão e profundidade dos conteúdos programáticos, mas principalmente pelos rigores das bancas examinadoras e pela concorrência com candidatos já formados pelas poucas faculdades de filosofia então existentes. Nós, os pobres egressos das escolas normais, não tínhamos títulos que se juntassem às boas notas obtidas: com isso, nossa hora de escolher  era sempre  no finzinho das filas. Depois de ótima classificação por notas, só escolhi cadeira em penúltimo lugar, com isso iniciando pela distante e rejeitada Miguelópolis a minha vida de professor do Estado. Rodolpho teve mais sorte: escolheu de cara, por falta de outros interessados, sua cadeira no próprio Euclides da Cunha.

Rodolpho, professor de Trabalhos Manuais, levou muito a sério o seu magistério, unindo a  destreza no modelar, serrar, colar, encadernar, com  especial habilidade no convívio com os alunos, que sempre o respeitaram e admiraram, embora sua matéria não fosse daquelas de meter medo pelo fantasma da reprovação.

Para muita gente, a conquista de um posto efetivo no ensino público podia dar por encerradas as ambições de progredir. Não assim com Rodolpho: ele não deixou passar a rara oportunidade de estudar na França durante um ano inteiro, graças a uma bolsa que lhe caiu do céu. Essa viagem alargou seus horizontes, ainda mais que logo depois de seu retorno, ele se comprometeu com a Resenha, do bravo Paschoal  Artese, a escrever suas impressões da Europa.

Os recursos gráficos do  jornal  Resenha, de nenhuma periodicidade, eram poucos, assim como o traquejo linguístico do estreante autor. Não raras vezes, a seu pedido, eu fiz a revisão prévia de seus textos, sugeri isso ou aquilo, cortei ali, acrescentei acolá. E revelo o seu grande mérito de aprendiz: a humildade aliada à firme vontade de assimilar conhecimentos. Aos poucos foi-se familiarizando com as questões de ortografia, pontuação, sintaxe: passou a redigir com desembaraçada simplicidade, conquista que manteve por anos e anos,  até que, de repente, cessou de escrever, desfez-se do computador, livrou-se de gramáticas e dicionários. Uma pena. Mas já publicara nada menos de dezesseis livros, todos referentes a nossa São José do Rio Pardo e sua variada gente.

A criação da nossa Faculdade de Filosofia lhe abriu as portas das ciências políticas e sociais, estimulado por José Ennio Casalecchi. Logo que terminou o curso, já foi convidado a lecionar na mesma Faculdade e chegou até a ser vice-diretor, num de meus mandatos diretivos, entre 1989 e 1992.

Sou testemunha de seu até exagerado afã  na preparação das aulas, na dedicação à pesquisa, na busca de informações fidedignas. Sua colaboração sistemática na Gazeta do Rio Pardo possibilitou a união da natural propensão de escrever crônicas com a constante busca de fontes históricas. Tornou-se um especialista na biografia euclidiana, de modo especial no período em que Euclides viveu aqui na cidade. Daí a sua natural atividade como integrante do corpo docente do Ciclo de Estudos Euclidianos e do próprio Conselho Euclidiano. Tem muito dele o mérito da “Hemeroteca Jornalista Paschoal Artese”, que instalamos na Faculdade, com a orientação  da Prof.ª Amélia Franzolin Trevisan. Dele e de Eduardo Roxo Nobre o belo trabalho que resultou no “Centro da Memória Rio-Pardense”, precioso acervo de fotos e documentos.

Diferentemente do que possam pensar os mais afoitos, é mundial a tendência acadêmica  de se valorizar a história local, com suas idiossincrasias, picuinhas, disputas e mal-entendidos. Esse rico filão Rodolpho explorou com habilidade e graça.

 A cidade  se mostra grata a Rodolpho José Del Guerra, tanto pelo que ele pesquisou e escreveu, quanto por seu espírito de benemerência a solidariedade, mas não há dúvida de que nas manifestações sobre a sua morte, faltaram  esperados testemunhos de  pessoas e instituições que muito lhe devem. Uma pena, mas Rodolpho saberia compreender e perdoar, dada a largueza de seu espírito e a grandeza de seu amor a esta cidade e a sua gente.

 Descanse na merecida paz, meu bom amigo.

 

10/12/2016
emelauria@uol.com.br

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