Papéis avulsos

 

 
Paisagem urbana

 

Estudiosos com incursões em ramos de conhecimento tão diferentes, como a ufologia, o esoterismo e a decifração de supostas mensagens de extraterrestres, afirmam que o tempo, no final do século XX e início do XXI, está andando mais rápido porque a Terra vem girando em torno de seu eixo imaginário com maior velocidade. E mais: as partículas subatômicas vibram numa frequência maior e nosso planeta já está a meio caminho de entrar na quarta dimensão, a do tempo.

 

Quem não sabe que vivemos a época de balanços? Sim, balanço no sentido contábil, de medir, pesar, avaliar, chegar a créditos e débitos. Por mais que procuremos dar importância mínima ao fim de um ano e ao surgir de outro, bate-nos sempre, com maior clareza, a ideia da fluidez do tempo e da inexorabilidade dos prazos. Certo, poucos de nós têm pelo fluir do tempo aquela preocupante angústia tão cultivada nos mosteiros trapistas que, se não for falsa a noção que nos passou antigo professor de História, de hora em hora um  daqueles monges, dedicados apenas ao silêncio e à meditação, passa pelas celas individuais dos mudos companheiros de ordem e lhes anuncia com voz seriíssima: “Irmão, lá se foi mais uma hora de tua vida. Aproxima-se o teu encontro com a Eternidade!

 

A vida como um todo nos ensina que, a não ser por exceção, às vezes gloriosa exceção, qualquer fragmento significativo   do tempo guarda espaço para alegrias, tristezas, descobertas, distorcidas interpretações, denúncias e renúncias. Alguém já disse mesmo que de modo geral o processo de envelhecimento se resume em perder coisas boas e em agregar coisas más. Perder o brilho do olhar amoroso, ganhar uma ruga de extrema visibilidade; perder a coragem de enfrentar aquele desafio, ganhar a aceitação da perda de um amigo tido como imortal. E assim por diante: ganhar ônus, perder bônus, empobrecer a vida e seus lances (a)venturosos – eis um bom  resumo da ópera.

 

Andamos uns duzentos metros até darmos de cara com uma casa de aspecto modesto, mas bem-cuidada. Uma porta simples ao centro, duas janelas azuis, parede caiada de branco. Junto, um canteiro de aspecto selvagem mesmo, com roseiras sem trato, coqueirinhos nativos, flores dessas bem simples, como agrestes  plantinhas de praia, margaridinhas amarelas, coisas assim. Atrás da casa, uma árvore com aspecto secular, deitando galhos de acolhedora sombra e firmemente assentada entre volumosas pedras. Só aquilo já daria muitos ângulos para belas fotos, além de alimentar a manifesta vontade de ficarmos por ali um bom tempo, esquecidos das horas e eventuais desculpas de compromissos. Mas não era só aquilo. Logo depois das pedras, silencioso, em fase de solidão e repouso, estava o mar. Nada menos que o mar, com momentâneo jeito de imensa piscina. Mas vimos logo pelas marcas na árvore e nas pedras até onde podia chegar aquele mar, o belo mar selvagem cantado com paixão por Vicente de Carvalho.

 

Por mais que não queiramos, com o decorrer do tempo (e no meu caso bote tempo nisso) vamos entendendo menos mal os mecanismos da vida e da convivência humana, vamos fazendo de tudo que nos chega às mãos leituras mais ou menos acuradas, interpretações mais ou menos elaboradas. Percebemos com clareza as angústias alheias, captamos sinais de S.O.S. emitidos quase em desgosto. Ao fim e ao cabo, dá vontade de resumir tudo numa daquelas frases antológicas em que um autor inspirado diz com meia dúzia de palavras o que não conseguimos expressar em páginas e páginas. Guimarães Rosa, por exemplo, o momentaneamente desfocado autor de obras importantes como Grande sertão: veredas, reduz muita filosofia e muita reflexão a esta frasezinha de nada, posta na boca de um cismarento jagunço: “Viver é muito perigoso”... E quem se atreve a desmenti-lo? Viver é muito perigoso, talvez só menos perigoso do que explicar, com todos os efes e erres, por que viver é muito perigoso.

 

O futuro do gênero humano está definitivamente ligado à tecnologia e à ciência, de tal modo que não compete a ninguém combatê-las, ignorá-las ou renegá-las. O homem é o único animal que se fez substancialmente a si próprio. Enquanto multidões de espécies animais existem agindo de modo igual, por milhões de anos, correndo, voando, nadando e escavando como sempre o fizeram,  o homem obteve suficiente domínio sobre sua evolução biológica, a ponto de influenciá-la em grau considerável. Está apto a controlar, quando menos, seu futuro próximo e se sobreleva entre as demais espécies, com a possibilidade de modificar as condições ambientais que o rodeiam.

 

Esquecer é uma arte que se aprende lentamente: as pessoas ficam mais tolerantes quando envelhecem porque aprendem a identificar e selecionar as lembranças que valem a pena. Por isso a maioria dos velhos sabe quão inútil é brigar por qualquer motivo. Assumem, sem saber, uma postura intelectual que Machado de Assis pôs na boca do Conselheiro Aires: sentem o tédio da controvérsia. Muitos velhos preferem relembrar memórias antigas, geralmente episódios  da infância e da juventude que correspondem ao tempo da felicidade –  aquele em que eram ágeis, fortes, bonitos, potentes, com toda a vida pela frente... Quer dizer: o velho que se sinta ao menos ágil, potente, com planos para o futuro, na verdade não é velho! Consolador, não? Quem explica isso direitinho é o grande escritor argentino Jorge Luis Borges,  cego desde muito moço e nem por isso posto à margem da vida.

 

Com o advento (que palavra antiga!) do computador, não cabe nem o prazer de olhar para uma folha de papel em branco, à espera de uma inspiração que acaba não vindo. Lembram-se daquelas cenas de velhos filmes em que o escritor começa uma frase, não gosta dela, amassa a folha e reinicia as tentativas em outra, até que a câmera mostra um cesto cheio de folhas amassadas? Isso agora é materialmente impossível. Quando muito, tem-se a imagem da tela em branco, na qual você pode lançar tudo, até ideias.

 

Apertando, apertando, o que deve ficar de um ano findante?  No plano pessoal de todos nós, há sempre aquelas vitórias contra as insídias do tempo, contra o desfazimento das coisas, contra o esquecimento inevitável, à vista mesmo do próprio desencadear das ações, por menores que tenham sido. Pequenas derrotas também, por vezes tão doloridas, porque afinal pouco influímos naqueles eventos de difícil catalogação, mas sabidamente acima de nossas forças, fora do nosso controle. Aquilo que os ingleses chamam acts of God – atos de Deus: somos por eles beneficiados ou prejudicados independentemente de nosso querer ou de nossos temores.

 

10/12/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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