Herói doméstico

 

 


Título: Juventude e beleza
   A primeira floração de um flamboaiã no começo da Avenida Marginal.
(6-11-2007 - foto: Márcio Lauria)
 

 

Sei o nome completo dele, mas não o revelarei.

Era na sauna, quinta-feira, véspera de feriado, em horário de pouco movimento. Lá estávamos apenas eu e meu colega versado na Bíblia.

Entra naquele forno e senta-se na bancada abaixo da minha um rapaz de seus trinta e cinco anos, boa aparência, com uma espécie de faixa envolvendo o joelho esquerdo. Achei estranho aquilo e lhe indaguei, mais para estabelecer um bom clima do que por curiosidade aguçada:

- Dá pra jogar domingo?

- Nem domingo, nem nunca.

A frase foi pronunciada num tom natural, sem revelar mágoa ou ressentimento.   

- O senhor não reparou, mas a minha perna esquerda é artificial, do joelho para baixo.

Com a pouca luminosidade do ambiente, nem deu para eu perceber, mas devo ter feito uma cara de espanto, de arrependimento, nem sei. Precisava  ter eu lhe perguntado aquilo? Por que não prestei mais atenção a ele, antes de abrir a boca?  Peço-lhe desculpas pela pergunta descabida e ele rapidamente contorna o meu constrangimento e conta com naturalidade, espontaneidade e isenção o terrível desastre que lhe modificou a vida toda.

- Eu estava parado em minha moto perto de um posto de gasolina ali na Avenida Perimetral. Aí vem em alta velocidade um caminhão sem freio, me atinge e me arrasta com moto e tudo por mais de cem metros. Minha perna esquerda se esfacela toda. Fraturei o ombro, umas tantas costelas – um estrago geral. Sorte estar de capacete.

- E o motorista?

- Ele nem percebeu o atropelamento e só parou bem  depois. Fui levado ao hospital, quase dado por morto e depois submetido a diversas operações, com mais de duzentos pontos, dezenas de grampos implantados em tantos lugares.

 - A perna...

-  A perna esquerda foi reduzida a uma coisa mole, sem nenhuma esperança de reimplante. Quando, depois de muito tempo,  me restabeleci das operações, fui para casa e então aconteceu desastre maior ainda.

- Maior do que perder uma perna e ter o corpo mutilado para sempre?

- Pior, muito pior.

- .......

- Minha mulher, ao me ver naquele estado de invalidez permanente,  resolveu me abandonar e não levar nossas duas crianças.

- Como é?

- É isso mesmo que o senhor ouviu: ela  saiu de casa e me deixou duas crianças, uma com um ano e pouco e outra com três.

Meu constante colega de sauna, homem muito apegado à Bíblia e única testemunha daquele incomum relato,  tudo ouvia em silêncio. Àquela altura, não se conteve e explodiu:

- Essa mulher é uma víbora, jamais terá o perdão de Deus! Onde se viu abandonar o marido numa hora daquelas? E dez vezes pior: não levar ao menos as duas crianças!!!

A reação de PMC (estas as suas iniciais)  foi de quem já havia pensado em tudo, remoído tudo mil vezes e superado todo o seu drama. Seu pote de mágoas estava esvaziado:

- Ela não suportou ver tanto sofrimento junto... – ainda justificou.

Eu até fiquei sem jeito de lhe fazer mais perguntas, fui tomar meu  banho. Contudo o rapaz, minutos depois, sentou-se perto de mim, num banco de repouso, e foi desfilando mais uma vez os lances de sua penosa história, para ele já um episódio superado, muito bem superado.

 - Foram meses muito duros. Com a perna amputada, eu tinha de cuidar dos filhos quase sempre ajoelhado. Fazia comida, preparava mamadeiras, lavava as crianças, cuidava  de nós e  da casa – tudo ajoelhado. Ganhava salário mínimo, às vezes eu até ficava sem ter o que comer. Para as crianças nunca faltou nada...

- E sua recuperação foi boa?

- Graças a Deus, sou homem de saúde, educado na religião. Meus ferimentos se cicatrizaram, tanto os do corpo como os da alma, fui muito bem atendido  por dois médicos que tudo fizeram por mim.

- Médicos de onde?

- Daqui de São José mesmo.

Ele me forneceu os nomes deles, ambos amigos meus, mas não me sinto autorizado a falar sobre isso.

- Com muito sacrifício, consegui de graça, no INSS,  uma perna artificial, mas era muito pesada e eu não me adaptei a ela. Acabei trocando-a por outra, até chegar a  esta que uso hoje. Custou um bom dinheiro, entrando a outra como pagamento inicial.

Então me sinto na obrigação de lhe passar com sinceridade umas palavras de incentivo pela sua coragem e dedicação. Meu colega de sauna não perde oportunidade de alertá-lo sobre a possível tentativa de volta da mulher.

- Não tem perigo. Ela reorganizou a vida com outro, já tem filho...

 Empregado numa grande empresa na quota de deficientes, PMG desempenhou tão bem suas tarefas, que em poucos meses já passou para o quadro dos funcionários permanentes.

 - E como é que você acomoda horários do trabalho e o cuidado com as crianças?

- Ah, está dando tudo certo. Trabalho no turno da noite. Saio do serviço bem cedinho, vou para casa, preparo tudo a tempo de levar as crianças à escola. Minha mãe agora dorme com elas.

- E você quando dorme?

- Durmo umas quatro ou cinco horas no período da tarde, depois vou buscar as crianças na escola. Nas minhas folgas, durmo até enjoar. Querendo, a gente acha jeito para tudo...

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Confesso que hesitei muito em publicar este relato. Pareceu-me relato muito pessoal. Como, porém, nós nem nos conhecêssemos antes do encontro na sauna e como ele me confiou sem vanglória  o seu sofrimento, penso que PMG tem de ser considerado um grande vencedor, que superou pela fé e pelo amor aos filhos adversidades capazes de levar a quase totalidade dos seres humanos ao desespero e à perda de sentido da vida. Sua história tem de ser contada como ele a contou: sem revolta, sem mágoas, sem recriminações.

Enquanto escrevia este texto, vieram-me à memória as belas palavras de Kipling no Se: “Se és capaz de forçar coração, nervos, músculos, tudo a dar, seja o que for que neles ainda existe e a persistir assim quando, exaustos, contudo resta a vontade em ti que ainda ordena: Persiste!

Tive, então, a certeza de poder incluir PMG numa rarefeita prateleira de verdadeiros homens.

 

10/11/2007
(emelauria@uol.com.br)

 

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