No museu

 

 
Ilustração do D.O. Leitura para o texto de “Cobra Norato”

 

É uma das infalíveis leis de Murphy você procurar uma coisa e acabar encontrando outra, que não conseguiu achar quando mais precisava dela.

Costume que pretendo abandonar daqui para  frente é guardar papéis dentro de livros. Cômodo fazer isso, para garantir certa ordem na mesa de trabalho, mas ao fim nunca sei onde coloquei isso ou aquilo.

Para resguardar papéis, dei preferência a livros de tamanho incomum: o Lello Universal, em quatro volumes, comprado por Marina lá pelos anos cinquenta do século passado; o maçudo Grandes Poetas Românticos do Brasil, que meu finado amigo Enni Jorge Draib ingenuamente me emprestou e eu não devolvi, mas tive, muito anos depois,  a propriedade reconhecida pela  irmã do emprestador, a falecida colega de magistério Râmisa Jorge; uma edição monumental de Os Lusíadas, em dois alentados volumes, organizada por Antônio Soares Amora (1957); o Dicionário Internacional de Biografias, em quatro espaçosos tomos. Foi em Os Lusíadas, tomo II, que topei com as duas folhas amarelecidas de um texto datilografado que talvez tenha permanecido inédito, mais de vinte anos após ter sido escrito:

Transcrevo:

 

No museu

 Finalmente entrei para o museu. Mais específico, para um museu literário.

Se daqui a tantos anos, algum descendente curioso, perdidas as fontes domésticas, quiser saber como eu falava, que gestos fazia, de que modo me expressava  perante um auditório amigo, esse pouco provável curioso poderá recorrer ao Museu de Literatura de São Paulo.

Só chegará a mim por vias indiretas, porque entrei para o museu na situação de comentador de obras alheias. Texto meu o mais provável é que não me garanta qualquer honra museológica.

Mas vamos aos fatos.

O muito paulista Mário de Andrade morou em alguns lugares de São Paulo, que desvairadamente celebrou. No Paiçandu e na Consolação, por exemplo. Na Barra Funda – outro exemplo, ao tempo abrigando sólidas moradias habitadas por gente bem-posta. Pois na Barra Funda, imediações quase dos Campos Elísios, então bairro nobre, morou Mário de Andrade, tido como o papa do Modernismo. Solteirão, tinha na Rua Lopes Chaves, 546, a companhia de uma irmã. Mário morreu moço e de repente, em 1945. Desapareceu com ele um modo peculiar de encarar a arte, a língua aqui falada, a própria cultura brasileira. Dele a crítica mais ferina que um livro já recebeu: Não li e não gostei...

A casa da Rua Lopes Chaves ouviu muita conversa amiga, testemunhou muito estudo, muita pesquisa séria. Porque Mário era tudo – bom conversador, escrevedor incansável de cartas, estudioso de mil assuntos, como poucos neste nosso país de improvisadores.

*

Das muitas residências transformadas em casas de cultura, para mim a menos evocativa do ocupante ilustre é exatamente a de Mário. Nela não percebi traço algum da sua presença humana, nem o ar  que em outras se respira.

Em Cordisburgo, a de Guimarães Rosa, além desse halo que procuramos em lugares históricos (a nossa Casa Euclidiana o tem), proporcionou-me atração extra. Junto a um vasto painel com a ampliação de todas as capas de livros de Rosa, surge-me de repente em carne e osso um tipo rude de vaqueiro que me informa:

- Sou fulano, personagem que aparece na página tal do livro tal.

E me pede uma ajudazinha para se manter. Surrealista a cena.

*

A casa de Portinari, em Brodowski, SP,  infunde em muitos visitantes o sutil desejo de ir adiando a saída daqueles cômodos modestos, valiosos não só por lembranças pessoais do pintor, mas pelo testemunho importante de sua já remota presença:  quadros, murais, a capelinha no quintal que ele decorou para a avó italiana rezar entre santos que ostentavam fisionomias de parentes, de amigos.

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A própria Casa de Rui Barbosa, na Rua São Clemente, Rio de Janeiro, tem certo residual da presença antiga de seu patrono. Quando menos, no jardim bem cuidado,  aquelas velhíssimas roseiras em flor, elas mesmas podadas e tratadas com carinho pelo homenzinho franzino de enormíssima inteligência, morto em 1923.

*

Mesmo sem provocar arrepios evocativos aos visitantes, na Casa de Mário de Andrade, abrigo do Museu de Literatura, é que se realiza trabalho testemunhal digno de imitação, particularmente  por nós, rio-pardenses: a todo justo propósito, a direção da Casa reúne pessoas que depõem, comentam, debatem, esclarecem, contradizem. Tudo é gravado em  videoteipe, formando um acervo invejável, quando menos pela variedade dos participantes e originalidade dos enfoques.

Tendo por avalista o euclidiano-rosiano-lobatiano Paulo Dantas, o do Capitão Jagunço, entrei para o museu, discorrendo sobre um tema exigente: “De Macunaíma a Cobra Norato”, em que procurei comparar as obras fundamentais de Mário de Andrade e de Raul Bopp, um modernista injustamente esquecido.

Não fiquei sozinho no depoimento cuja personagem específica era Raul Bopp, poeta gaúcho engajado nas correntes “antropofágica” e “verde-amarela” dos modernistas de São Paulo. Seu longo poema “Cobra Norato” é uma das mais importantes criações de todo o Modernismo brasileiro e um dos mais extraordinários da lírica brasileira de todos os tempos.

Companheiros de tarefa: um garbosíssimo senhor de oitenta e seis anos, Itamar Bopp, irmão do homenageado; Henrique L. Alves, pesquisador de amplos méritos; Walter Guerra, admirador e conhecedor profundo da Amazônia; Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo, professora de Letras na USP, que se  lembrou de tanta gente de nossa cidade, onde residiu e  estudou por alguns anos. Em primeiro lugar, perguntou pelo mestre Hersílio Ângelo, uma de suas admirações definitivas. Precisei dar a ela a triste notícia  da morte de Laércio Barbosa, também seu professor de Latim, ao tempo em que se ensinava essa língua morta de um modo muito vivaz, para nunca mais se esquecer do essencial.

Sou, pois, oficialmente peça de museu, ainda que em situação de coadjuvante. Valeu a experiência, por tantos motivos: ver na pequena assistência  o Dr. Oswaldo Galotti e meu filho-xará; sentir a fraterna acolhida que me proporcionaram Paulo Dantas e o pessoal de apoio da Casa; a boa companhia de tanta gente sabida e simples; o muito que lá vi e ouvi e o muito que precisei ler, reler e refletir para me sair sem maiores constrangimentos de uma incumbência incomum.

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Tempos depois o D.O – Leitura, suplemento literário do Diário Oficial do Estado de São Paulo, publicou integralmente meu texto, com uma ilustração de insuperável delicadeza.

*

Mas o que me entristece neste escrito agora redescoberto é que das pessoas nele citadas apenas duas sobrevivem: meu filho, promotor de Justiça, e Marleine Paula, aposentada na USP, mas em plena atividade de pesquisadora e docente. Foi ela quem, há algum tempo, me indicou para falar na cerimônia de entrega do Prêmio Euclides da Cunha a turmas do curso de Relações Internacionais  da ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo.

 

10/10/2015
emelauria@uol.com.br

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