Dias intensos

 

Trabalhos de Hércules

Temerário começar citando nomes, porque o risco de injustiças é inevitável. Melhor falar em três entidades, com todos os seus componentes: Prefeitura, Departamento de Esportes e Cultura – DEC,  e Casa de Cultura Euclides da Cunha.

No esforço concentrado de tantas pessoas, a razão do êxito de uma Semana Euclidiana  temporã, perseguida por dificuldades de toda ordem, desde a gripe suína até a anulação das provas do Enem. Uma Semana Euclidiana que se pensou irremediavelmente cancelada e que ressurgiu esplendorosa numa noite de domingo.

Não sou eu, hoje muito envolvido com tudo isso, grato a tanta referência amistosa, que falo bem das coisas. É a reação de todos, presentes a um espetáculo de luzes, cores, sons, movimentos, simbolismos, magia. Pobre de quem não esteve no Recanto, entre oito e onze da noite de  domingo, 4 de outubro. Oitocentas pessoas sentadas, outras tantas (ou mais) acomodadas como bem puderam e não tirando os olhos daquele trágico mausoléu, transformado, com certa irreverência, em palco, cenário, pista, abrigo, metáforas.

Quem não tiver gostado, paciência. Quem tiver torcido o nariz para isso ou aquilo, o que foi feito foi feito. Os tempos mudam e nós com eles. Lembrei-me de um conto de Anatole France, “O jogral de Nossa Senhora”, em que piruetas substituíram elaboradas palavras de uma oração que só o coração sabia.

Jamais vi público  assim atento, assim participante, assim emocionado, que teve seus sentidos convocados entre palavras euclidianamente sérias e pesadas, passos leves de bailarinos, luzes inesperadas, jubilosos fogos no céu noturno,  voz aguda de contratenor e voz poderosa de tenor, vozes harmonizadas de coral, sons de todos os timbres, alturas e intensidades que só uma orquestra posta sob o poder encantatório de um maestro pode produzir . E chama lançada à pira com a força de humano pulmão, e cavalo cerimonioso, e Mozart de braços dados com Jobim, e bandeira subindo ao mastro às palavras sentidas (e nem sempre exatas) da cantora popular de coração na mão, e ponte iluminada, suspensa...

Exagero meu? Não. Conferi minhas impressões com as de tantas outras pessoas e senti, ao dia seguinte, nas ruas, o pesar de quem não foi porque nem sabia, ou não sentiu vontade, ou não acreditou nos milagres do trabalho imaginoso e árduo, competente e solidário.

 

O ministro pacificador

Quando ficou assentada a vinda do ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vanuchi,  pensei coisas  díspares. Lembrei-me do orgulho dos pais – Ivo e Maria da Penha – ante a personalidade firme e corajosa do adolescente falando grosso à frente do governador  Abreu   Sodré, um democrata de raiz. Lembrei-me   das lágrimas de sangue do mesmo Ivo, anos depois,   atingido no peito pela prisão do mesmo Paulo de Tarso e do outro filho, José Ivo.

Ao invés, quem chegou por aqui, na tarde de 5 de outubro, foi um senhor  afável, encanecido nos restantes cabelos, afetuoso nos gestos e nas palavras, portador do ideal de justiça  cristã, baseada no amor e no esquecimento sem mágoas.

Junto com José Ivo e as duas Marias Helenas – uma irmã e outra cunhada, prefeita de São Joaquim da Barra,  o ministro sentiu a sinceridade com que se falou de seu pai, Ivo Vannuchi, padrão dos professores euclidianos em décadas passadas. Nomes já envoltos pelo véu do esquecimento, como Adelino Brandão, Moisés Gicovate, Dálvaro da Silva, Célio Pinheiro, ressurgiram remoçados e revalorizados pelo trabalho que executaram aqui e em suas cidades, com dedicação e competência.

O ministro (de novo para alguns de nós o Paulinho Vannuchi) desenvolveu, na palestra pontilhada de boas reminiscências, um tema que não quis aprofundar, em face das circunstâncias em que falava: Euclides da Cunha e os direitos humanos, assunto que dá discussão, trabalho acadêmico, livro...

Presenteou-me com valioso material sobre as buscas de corpos daqueles que foram mortos pela repressão, até hoje não localizados.

Saber onde estão seus mortos é o direito mínimo de pais, mães, esposas, filhos.

 

Cultura Euclidiana

Assim se chama a revista – leve, graciosa, convidando à leitura – que surgiu de um amontoado de bons textos destinados a uma simples apostila de uso no Ciclo de Estudos. A boa vontade de quem a precisava ter, aliou-se ao recursos informáticos e gráficos de hoje,  e aí está, com tiragem de dois mil exemplares que com certeza  terão muito bom uso na Semana, e mais: passará a ser boa fonte de consulta. Em poucos dias, um vago projeto, quem sabe adiável para o ano que vem, tornou-se realidade.

O Euclides da capa é  dos mais nítidos e dos menos conhecidos, mas em matéria de ilustração nada bate a foto da contracapa, que mostra a ponte metálica em fase de montagem. Se localizo bem o fotógrafo, ele postou-se  na ponta da ilhota vizinha  à ilha de São Pedro e flagrou a ponte com pouco mais da metade de sua estrutura já assentada.

 

Grata lembrança

Convidado por Marco Antônio Rodrigues Barbosa, fui ao descerramento do retrato de seu pai, Laércio Barbosa,  patrono da Casa de Cultura e Cidadania, inesperadamente ampla e funcional, no afastado bairro da Vila Verde.

Depois das palavras protocolares de elogios e rememorações, lá surge, em grande pose de galã dos anos cinquenta,  o querido professor de Latim de outros tempos, no “Euclides da Cunha”.

Laércio Barbosa, que pôs na cabeça de tanta gente as declinações, as conjugações ativas e passivas, De Bello Gallico, as fábulas de Esopo, a Eneida...

Marco Antônio revela que, em vinte e cinco anos de magistério, Laércio foi escolhido paraninfo vinte e quatro vezes. E lembra de seu próprio curso Clássico, lá pelos anos sessenta. Eram quatorze anos, dos quais doze entraram direto nas faculdades que escolheram. Detalhe: a mais aplicada aluna da classe não prestou vestibular por motivo relevante: casar-se apaixonada...

 

Livro euclidiano

Trago de Cantagalo, com generosa dedicatória,  A Geopoética de Euclides da Cunha, de Ronaldes de Melo e Souza (Editora UERJ, Rio, 2009).

É o destino final do belo estudo homônimo com que Ronaldes, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, obteve o primeiro lugar no concurso que a nossa Casa de Cultura promoveu em comemoração ao centenário de Os sertões, em 2002.  Comissão julgadora: Maria Olívia Garcia, Pedro Vasconcellos Lima e eu.

Está na orelha do belo volume:

A partir do consórcio entre ciência e arte, Ronaldes demonstra com clareza o projeto multidisciplinar  do autor de Os sertões.  Para sustentar a obra, Euclides cria um narrador multiperspectivado  que logra dar conta da diversidade da terra e do homem de Canudos, metonímia do Brasil”.

 

10/10/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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