Vidas pequenas
Era uma grande irmandade, mesmo para os padrões de antigamente: três homens e oito mulheres. Os pais tinham vindo de longe, muitos anos antes. Ele, baixinho, sardento, ruivo, briguento. Irresistível atração pelo jogo, pela mesa-verde, por damas, valetes e reis, pela orelha da sota, como se dizia. Rico três vezes e pobre quatro, ao sabor da fortuna. Ela, baixinha, morena, olhos verdes, com uma fatalista atitude de resignação, como se estivesse sempre preparada para se perguntar, abrindo os braços e erguendo o rosto para o céu: “O que é que se há de fazer?” Por causa da instabilidade do pai, o filho mais velho foi assumindo funções, ocupando os vazios, limitando os seus próprios horizontes em favor da irmandade, da família. Irmãs foram casando, ao longo dos anos, mas ainda sobravam algumas delas.
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Um dia, a notícia surpreendente: a mais velha das solteiras pôs-se a enfeitar-se, a ficar bom tempo à janela em horas certas, esperando ver passar por ali o mascate árabe que lidava com mercadoria das mais estranhas – tirar fotos de pessoas. O irmão-chefe perguntou a ela se havia verdade naquela notícia.
- É sim, um dia destes ele vem aqui em casa, falar com vocês.
Antes disso, o irmão foi à procura de informações sobre o desconhecido pretendente. Soube que era mesmo fotógrafo ambulante e dos bons, mas com uma inaceitável especialização: visitava as casas de prostitutas e as retratava em pelo, vendendo depois cópias para uma freguesia certa e crescente.
O irmão nem pensou duas vezes, contou tudo à irmã interessada e já decidiu por ela: - Nada de namoro, nada de visita. O sujeito não presta e o caso está encerrado. A irmã aceitou o veredicto, nunca mais se falou no assunto.
Morreu solteirona, cinquenta ou mais anos depois, sem ter visto nenhuma fotografia tirada pelo árabe ambulante, que mereceu até número especial de homenagem numa revista do ramo, a Íris. Um legítimo precursor da lucrativa arte que culminou em Playboy, Penthouse.
A irmã impedida de correr os riscos da vida e do amor foi como que mãe de muitos sobrinhos, de sobrinhos-netos.
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Grave, muito mais grave foi o sucedido com outra das irmãs, bem mais nova, mais bonita, muitos anos depois.
O objeto de sua paixão era um sujeito alto, forte, legítima estampa de galã e desde sempre antipatizado por muitas pessoas, o irmão-chefe à frente. Os motivos? Ora, ora, ouvia-se, aqui e ali, que o rapaz não era flor que se cheirasse. Vai-se discutir contra um argumento dessa força!
Era preciso, pois, defender a donzela, prestes a ser submetida por aquele dragão da maldade.
Deve ter havido cenas daquelas, com choro, ranger de dentes, arrancamento de cabelos, chiliques e ameaças. Casamento com aquele droga? Nem pensar. A solução radical foi apressar a mudança dos velhos e das irmãs solteiras para São Paulo, onde já estavam os outros dois irmãos.
Na triste casa do bairro fabril, a bela irmã se consumiu na revolta, no pranto, na lembrança desesperançada de seu amor, correspondido com paixão. No fundo da alma revoltada, guardou silenciosa mágoa do irmão-chefe.
“É para seu bem”, devem ter-lhe dito. (Haverá frase mais invasiva do que esta?)
Ela aceitou casar tempos depois com um homem bom, um pouco velho, bem situado, amoroso, coxo, o antigalã por excelência. O irmão-chefe naturalmente foi padrinho de casamento e sempre se deu muito bem com o cunhado, que também exercia profissão incomum – cambista do jogo de bicho.
O primeiro filho deles morreu assim, de repente. O segundo vicejou num belo rapaz, alto, encorpado, ruivo e sardento.
A bela irmã, já não tão bela, foi-se fechando em seu mundo, acabou tuberculosa. Nunca voltou à cidade natal, nunca perguntou nada de ninguém, nada esqueceu, nada perdoou. Estendeu aos sobrinhos o mutismo que dedicou a vida toda ao irmão-chefe. Talvez tivesse feito bem a ela saber que seu amado a esperou por muito tempo e também não foi feliz.
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Desapareceram já todos os participantes e todas as testemunhas presenciais destas duas tristes histórias, retalhos de vidas pequenas e humildes .
Conto-as hoje na tentativa de fazer durar um pouco mais a lembrança de pessoas de outros tempos, de outros costumes. Na verdade, o esforço é vão, porque eu apenas soube dos fatos, não os vivi.
E sabe-se muito bem que as ocorrências da vida continuarão tendo sentido apenas enquanto houver testemunhas de sua realidade. As pessoas existem porque outras testificam suas existências. Fora disso, os acontecimentos, ainda os mais pungentes e reais, tornam-se matéria de ficção e servem para alguém preencher espaços nas colunas semanais.
10/09/2011
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