OUTROS ACASOS

Motivadas pelo meu escrito da semana passada – “Acasos Providenciais”, andaram me fazendo umas perguntas cujas respostas nem sei se valeriam referências públicas.

Alguém me cobra  explicação sobre uma frase que ficou meio suspensa, logo no começo do texto: “Quem não tem em sua vida um, dois, muitos exemplos da mão do acaso interferindo poderosamente na urdidura do futuro? Eu mesmo poderia citar alguns, se em lugar disso não quisesse tratar do acaso atuando no campo específico da literatura.”

Agora me lembro de velho texto, inserido em Tempo & Memória (meu livro de 1986 que traz artigos de anos anteriores) que poderá satisfazer alguma curiosidade de pessoas amigas. Não o reproduzirei, mas usarei seus dados, acrescentando comentários hoje pertinentes.

Escrevi na Gazeta do Rio Pardo, mais precisamente na minha seçãoCalidoscópio”, por 1982, que um dia encontrei tempo para ler com vagares o Missal Quotidiano e Vesperal, texto latim/português, por Dom Gaspar Lefèbvre, beneditino da Abadia de Santo André, edição de Desclée de Brouwier & Cie., Bruges, Bélgica. Muitas outras vezes, através dos anos,  andei mergulhando naquelas páginas, delas sempre tirando algum proveito, não espiritual, mas estético, lingüístico, tão profundo o texto latino, tão cuidada a tradução para nosso idioma.

O que sempre me espantou foi por que, há quase cinqüenta anos, mereci presente tão raro e tão caro: duas mil e duzentas páginas, papel-bíblia e encadernação em couro. De fato, está com sua própria letra, a dedicatória de minha mãe, a 11 de fevereiro de 1956, porque nós vivíamos as vésperas de eu partir para  aventurosa viagem que acabei não fazendo. Mãe sente saudade até por antecipação.

É que eu estava de malas quase prontas, rumo ao Paraguai, onde, por indicação de meu mestre Carlos Henrique da Rocha Lima, autor da excelente Gramática Normativa da Língua Portuguesa, iria lecionar Português num colégio que o Brasil acabara de instalar em Assunção. O próprio Rocha Lima fora o convidado pelo Ministério das Relações Exteriores para dar aulas ao menos durante o primeiro ano de funcionamento, mas  seus filhos eram pequenos e, além do mais, ele se empenhava  na prestação de concurso para efetivação numa cátedra no Colégio Pedro II.

Meu amistoso conhecimento com Rocha Lima deu-se  no Colégio Nova Friburgo, da Fundação Getúlio Vargas. , num curso de mais de mês ministrado por ele, fui convidado a ir em seu lugar  para o Paraguai, em condições muito boas, ainda mais para mim, solteiro e desimpedido. Aceitei de imediato, porque a honra de ter sido  escolhido por Rocha Lima entre professores bolsistas de todo o Brasil superava qualquer dificuldade (assim eu pensava). Desci algumas vezes de Friburgo para o Rio, numa longa viagem por estrada em obras de asfaltamento, a fim de acertar pormenores no Itamaraty. Levei, na primeira viagem, minuciosa carta de Rocha Lima para Antônio Houaiss, que por sua vez me conduziu a João Cabral de Melo Neto.

Desse modo inusitado, travei contato com duas futuras celebridades nacionais, que teriam destinos tão diferentes: Houaiss, então organizando a Enciclopédia Delta-Larousse, teria corajosa atuação política no tempo do regime militar, seria até aposentado por isso, mas se firmaria como um  acabado exemplo do humanismo brasileiro, além de autor  do mais moderno dicionário da língua portuguesa. João Cabral, que chegaria a embaixador e se acabaria firmando como grande nome da poesia brasileira, ainda não tinha escrito sequer a “Ode à Aspirina”, nem dado emCatar Feijão” a bela lição de como o criador deveria considerar a palavra, seu peso e suas pedras. havia merecido o prêmio do IV Centenário de São Paulo ( “O Rio”,1954), mas nem pensava na trágica beleza de “Morte e Vida Severina”. Nem por sonho poderia pensar na degradação que seu belo adjetivo – severino –viesse merecer nos dias que correm.

João Cabral me recebeu afavelmente no Itamaraty, ele próprio um agreste pernambucano talvez pouco à vontade em lidar com tantas pessoas formais e erectas, tão erectas e formais quanto as palmeiras imperiais rigidamente enfileiradas às margens de um quadrado lago, povoado de negros cisnes, circunspectos e solenes.

Ao fim do memorável curso  de quarenta dias de tempo integral naquele colégio instalado no alto da montanha, em prédio construído para cassino proibido de funcionar, ao fim voltei aqui para casa, encantado com aquelas coisas saídas tão sem obstáculos. O Ministério do Exterior aceitara  a indicação de Rocha Lima, apesar dos meus vinte e quatro anos e modestíssimo currículo, que tinha de importante (e como!) apenas um concurso de ingresso no então insuperável magistério público paulista. A remuneração que me ofereciam era de espantar: bom salário em dólares, hospedagem completa e – como me estimularam no Itamaraty – não ter onde e com que  gastar no Paraguai...

Era o começo da era janista. Como se lembram alguns, Jânio Quadros, estranha figura de cabelos desgrenhados, esgares teatrais e voz esganiçada, em 1956 ganhara a eleição para governador de São Paulo e queria aplicar a lei com o máximo rigor para fazer jus à fama e ao tom de sua campanha eleitoral – uma vassoura, para limpar todas as sujeiras da vida política nacional. Um tal Dr.Tosta, do Itamaraty, me telefonava cada vez mais desanimado, porque meu afastamento por dois anos como funcionário estadual estava difícil. Na verdade, hoje sei que  nem direito a ele eu ainda tinha, porque  não vencera meu estágio probatório, não me havia tornado  professor vitalício, como se dizia orgulhosamente  naquelas longínquas eras.

Senti a oportunidade perdida e tive a nítida idéia de que com ela se ia toda a possibilidade que o acaso criara em Nova Friburgo. Uma bela e incomum perspectiva profissional que se abrira e se fechara com rapidez. Decorridos quase cinqüenta anos, nem tenho por que lastimar coisa alguma. Apenas relatar.

Nem de Jânio  guardei ressentimento: acabei contribuindo com meu voto, em 1960, para que o Dr. Quadros sentisse por sete meses a terrível solidão presidencial em Brasília. Sofri, como o povo brasileiro, a amarga decepção de sua renúncia à presidência da República um gesto teatral que não deveria ter sido levado a sério, mas  foi.

Tenho sempre disponível o Missal  de Lefèbvre, tornado peça de museu com a reforma litúrgica, mas nem por isso sem o encanto de uma obra bem escrita e melhor traduzida.

Além do Missal, guardo daqueles dias incomuns outras belas lembranças, como a tese impressa do concurso de Rocha LimaUma Preposição Portuguesa, edição particular, que esgota o assunto do emprego em nossa língua da preposição a.

Releio com reconhecimento e renovada emoção a cordial dedicatória do meu exemplar da tese, datada de 7 de fevereiro de 1956. Por muito tempo mantive contato com o mestre, falecido em plena atividade cultural em 1991.

 

10/09/2005
(emelauria@uol.com.br)

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