A
RESPEITO
DO "ESTOURO DA BOIADA”
Herma colorizada
Segue a boiada vagarosamente,
à cadência daquele
canto
triste e
preguiçoso. Escanchado,
desgraciosamente, na sela, o vaqueiro,
que a revê unida e acrescida de novas crias,
rumina os lucros
prováveis: o que
toca ao
patrão e o que
lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai
dali mesmo contando as peças destinadas à feira:
considera, aqui,
um
velho boi
que ele conhece há dez
anos e nunca
levou à feira,
mercê
de uma amizade
antiga;
além, um
mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra
estrepe agudo,
que é preciso
arrancar; mais
longe, mascarado,
cabeça
alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela
compressão dos
outros, o garrote
bravo,
que subjugou, pegando-o, de
saia, e derrubando-o, na
caatinga; acolá, soberbo,
caminhando folgado porque os demais
o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo,
o touro vigoroso,
inveja de toda
a redondeza, cujas
armas
rígidas e curtas relembram, estaladas,
rombas e cheias de
terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além,
para toda a banda, outras peças,
conhecidas todas, revivendo-lhes todas, uma a uma,
um
incidente, um
pormenor qualquer
de sua
existência
primitiva
e simples.
E
prosseguem,
em ordem,
lentos, ao toar
merencório da
cantiga,
que parece acalentá-los, embalando-os com o refrão monótono:
Ê cou mansão
Ê cou...ê cão!
ecoando saudoso nos descampados mudos…
De súbito, porém, ondula
um frêmito
sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos
luzidios. Há uma
parada
instantânea. Entrebatem-se, enredam-se,
trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente
o espaço, e inclinam-se, e
embaralham-se
milhares de
chifres. Vibra uma trepidação
no solo; e a boiada estoura...
A boiada arranca.
Nada explica, às vezes, o
acontecimento,
aliás vulgar,
que é o desespero
dos campeiros.
Origina-o o incidente mais trivial – o súbito vôo rasteiro de
uma araquã
ou
a corrida de
um
mocó esquivo. Uma rês
se espanta e o
contágio, uma descarga
nervosa
subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único,
assombroso, atirando, de
pancada,
por diante,
revoltos, misturando-se embolados, em vertiginosos
disparos, aqueles
maciços corpos
tão normalmente
tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais
contê-los ou alcançá-los. Acamam-se
as caatingas, árvores
dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente
as baixadas num
marulho
de chifres; espreitam, britando e
esfarelando as pedras, torrentes de cascos
pelos tombadores;
rola
surdamente pelos
tabuleiros ruído
soturno e longo
de trovão
longínquo...
Destroem-se em minutos, feito monte de
leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros
revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os
pousos;
ou esvaziam-se, deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para
os lados, evitando o rumo retilíneo em que se
despenha a “arribada”, - milhares
de corpos que são um corpo único,
monstruoso, informe, indescritível, de animal
fantástico, precipitado na carreira douda. E sobre
este tumulto,
arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira
dos destroços,
que
deixa após si aquela avalanche
viva, largado numa
disparada
estupenda sobre
barrancos, e
valos, e cerros, e
galhadas
– enristado o ferrão, rédeas soltas,
soltos os estribos, estirado sobre o lombilho,
preso às crinas
do cavalo – o
vaqueiro!
Já se lhe têm associado,
em caminho,
os companheiros,
que
escutaram, de longe, o
estouro
da boiada. Renova-se a
lida:
novos esforços,
novos arremessos,
novas
façanhas, novos
riscos e novos
perigos, a despender,
a atravessar e a vencer,
até que
o boiadão, não
já
pelo trabalho dos que o encalçam pelos
flancos, senão
pelo cansaço, a pouco e pouco
afrouxe e estaque, inteiramente
abombado.
Reaviam-no à vereda da fazenda;
e ressoam, de novo,
pelos
ermos, entristecedoramente, as notas melancólicas do aboiado.
(EUCLIDES
DA CUNHA. Os Sertões, edição
crítica de Walnice
Nogueira
Galvão. São Paulo,
Editora
Ática, 1998, páginas 115 e 116)
Foi assim o processo de
elaboração
desta página,
em São José do Rio
Pardo, segundo
depoimento do euclidiano JOSÉ HONÓRIO DE
SYLOS para a revista “Cadernos da Hora
Presente”, de julho/agosto de 1939, depois
citado por OLÍMPIO DE SOUSA
ANDRADE em seu livro História
e Interpretação de “Os Sertões”:
Não satisfeito com o que sabia
a respeito de
estouros
de boiadas (
nunca
assistira a um deles), Euclides
quis ouvir de um boiadeiro velho,
o Jerônimo Picuí, a “pintura
caipiresca” do evento.
Tão
viva e precisa
foi a descrição
oral,
que sua
boiada, a “tremer a terra com o estrépito de seus
passos pesados, atroando o ar com o embate seco das guampas...que até fedia a chifre queimado”.
NOTAS EXPLICATIVAS
Nas edições
em que
se usam os entretítulos criados por Fernando Nery, este
excerto abrange “A arribada” e “Estouro da boiada”.
Escanchado – de
pernas abertas
Rumina – calcula
Pelo
trato feito
– de cada
quatro
reses criadas, uma pertenceria ao vaqueiro.
O dono da terra,
que muitas vezes
morava na cidade, ficava com as outras três
Peças – cabeças
de gado
Mumbica claudicante – bezerro magro e mancador
Flanco – lado
do corpo
Mascarado – de cara branca ou malhado
De saia – pela cauda
Armas – chifres
Rombas – sem ponta,
desgastadas
Guampaços – chifradas
Formidáveis – de meter medo
Logradouros – pastagens
públicas para o gado
Merencório – melancólico,
entristecedor
Refrão – fórmula
vocal que
se repete; estribilho
Frêmito
- rumor
surdo e áspero
Dorsos – parte superior do corpo
dos animais;
costas
Luzidios – brilhantes
Trivial – comum,
sem importância
Araquã
– ave da
família
das galináceas que vive mais nas árvores
do que no
chão
Mocó – roedor
dos campos,
semelhante
à cobaia
Não
há mais contê-los =
já não é possível
pará-los. Emprego
clássico
do verbo
haver, muito
ao gosto de Euclides. O verbo tem de estar em frase negativa e seguido de
infinitivo
Acamam-se – abatem-se, inclinam-se
Desbordam – extravasam, transbordam
Britando – reduzindo a pequenas partículas.
Este verbo,
de largo
uso
atual, à época
de Euclides era tido como arcaísmo
Tombadores – morros
íngremes, de
forte
inclinação.
Muitos
deles têm forma de
tabuleiros
que terminam
abruptamente
às margens dos
rios
Leivas – torrões
de terra
Soturnos
– tristes,
lúgubres
Ipueiras – pequenas
lagoas formadas pelo
transbordamento de
rios
Pousos
– lugares de
descanso
do gado
Arribada – estouro
da boiada
Enristado o ferrão
– colocado em
posição vertical
o aguilhão, a
ponta
de ferro
com
que os vaqueiros
tocam as reses
Lombilho
– parte do
arreio
de um
cavalo
em contato
direto com
o corpo do
animal
Abombado – cansado,
exausto
Reaviam – forma
da 3.ª pes. do pl. do pres. indicativo
do verbo
reaviar, reenviar; mandar de volta
Vereda - caminho
estreito, atalho
Aboiado - toada pouco variada e triste
que o vaqueiro
entoa para guiar e pacificar as reses
É
conhecida a preocupação de Euclides da Cunha com a precisão vocabular.
No pequeno trecho aqui evidenciado, isso fica muito patente: mais de dez
palavras que foram aqui elucidadas são termos de uso regional, cujo
sentido escapa ao leitor comum. Provavelmente nenhum escritor atual que
desejasse ter êxito junto ao público deixaria de explicar no próprio
texto ou em nota de rodapé o que tal ou qual palavra quisesse dizer.
Euclides não: para ele, essa função de buscar o sentido exato dos
vocábulos é da alçada do leitor consciente... Daí a ideia, comumente
aceita, de ser Euclides um escritor difícil. Na verdade, a
construção euclidiana usa muito menos dos recursos da sintaxe portuguesa
do que a de Machado de Assis, por exemplo. O vocabulário euclidiano é
que é preciso, exatamente para dar a veracidade da narrativa através da
captação da cor local...
Este trecho, um dos mais bem construídos em língua
portuguesa, encerra
frases
de notável harmonia imitativa,
principalmente através do uso
deliberado de onomatopeias. A mais significativa delas é “rola
surdamente
pelos tabuleiros
ruído soturno
e longo de
trovão
longínquo...” – em que são valorizados os aspectos
fônicos do /u/ e /o/, além dos sons nasais.
De
notar-se, ainda, a sensação de cansaço conseguida pelo uso de
termos longos e de sons graves, no último parágrafo.
10/08/2013
emelauria@uol.com.br
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