A mania da hora
Primeiro pensei que se tratasse de evento do Mercado Cultural. Depois percebi que o prédio em forma de navio da Praça Barão do Rio Branco estava fechado. Então, o que fazia aquela centena de pessoas compenetradas, consultando, anotando, discutindo - umas de pé, outras sentadas no gramado? Aproximei-me do ponto de mais concentração humana, nas proximidades de lotada banca de jornais e revistas, vi gente conhecida, de idades variáveis, desde crianças e adolescentes, até homens e mulheres com rodagem suficiente para terem netos. Algumas os traziam a tiracolo e trocavam ideias, concordavam, sugeriam, discordavam, expressavam-se com calor. Uma ex-aluna, bem madurona, perguntou se eu também estava engajado naquela empolgante atividade. Tive de lhe dizer que, simples comprador da Recreativa, sequer sabia eu do que se tratava: - Figurinhas da Copa! Estamos preenchendo o álbum da Copa!!! É de entusiasmar, é de obrigar a gente a comprar, negociar, trocar... Então era isso: tal como acontecera em outras épocas, a aproximação da Copa-2014 mexe com o espírito lúdico adormecido pelas durezas da vida e cria em milhares, milhões, uma espécie de obrigação — preencher tudo o que diga respeito a cada um dos países participantes. Rivalidades são esquecidas, paixões clubísticas postas de lado, porque é um só o grande objetivo: ter um álbum completo, não se sabe bem para quê. Fico sabendo que não há figurinhas carimbadas e que ainda não voltou uma das formas baratas e até anti-higiênicas de conquistá-las: bater bafo. Quem sabe o que é isso, sabe. Quem não sabe acabará aprendendo, se a prática for ressuscitada. * Comento em casa com um filho visitante a cena que eu tinha visto. - É assim mesmo. Eu também estou colecionando, junto com minha filha... Por essa eu não esperava. Então aquele senhor cinquentão é chegado a umas figurinhas? E sua filha de vinte e poucos também participa? Ele me confirma que sim e até me convida para preencher em sociedade — o que rejeito. Então ele me pergunta se sei qual a seleção mais fácil de ser completada. Como vou saber? - É fácil. A japonesa. Com exceção do goleiro, que tem uniforme diferente, você pode colocar qualquer jogador em qualquer lugar. Faço um gesto de descrença e já recebo a explicação complementar: - Todos têm a mesma cara... Esse meu filho faz mais: oferece de presente um álbum virgem ao cunhado, meu genro, portanto. A oferta é imediatamente aceita, o que me deixa mais encabulado ainda. Então recebo deles todos algumas explicações técnicas: o álbum é feito no capricho; as figurinhas são baratas e autocolantes, bem diferentes das de minha remota infância: havia as carimbadas (autografadas pelo jogador retratado), as muito difíceis e as comuns. O duro era colar, porque uma operação malfeita emporcalhava a página toda. Ou se usava goma arábica ou se fazia cola vagabunda com farinha de trigo. Hoje é tudo prático, limpo, convidativo e capaz de fazer milhões de pessoas bem-postas na vida se comportarem prazerosamente como criançolas. Quem guardará como relíquia o álbum da Copa-2014? Depende muito, creio eu, de como se comportarem Neymar e companhia bela, de como a tal família Scolari se houver em campo. Enquanto há vida, há esperança.
VIAGEM INAUGURAL Na rara conjunção de feriado nacional na quinta-feira e possibilidade de enforcar o dia útil da sexta, a cidade fica abarrotada de gente. Lugar para estacionar carro? Nem pensar. O bom é sair a pé e ir desfrutando a presença de tanta gente com quem se fala, a quem se abraça, com ensejos de amáveis retornos. Sábado de manhã, assim me disse um gaiato, deu-se um congestionamento monstro na Francisquinho Dias e ruas transversais. Chegou a mil e seiscentos metros o espaço de carros parados! Coisa de cidade grande... * Mas para mim o feriado prolongado me trouxe importante visita: a bisneta Ana Beatriz, na flor dos cinquenta dias de vida. Uma delicada pessoinha que divide seu tempo com mamar, dormir, mal distinguir quanta gente a rodeia e lhe faz agrados. De vez em quando, um chorinho de cólica, como me explica o diligente pai, o meu neto Paulo. É essa diligência, essa aplicação, essa solidariedade do marido com a mulher (Ana Luísa) e do novato pai com a filha que me chamou a atenção e me demonstrou como a própria essência da paternidade mudou muito nos últimos tempos. Meus avôs, meu pai e eu mesmo pouco fazíamos de prático no auxílio às mulheres na difícil fase da chegada de gente nova. Meus filhos já foram bem mais prestativos naqueles momentos em que as mulheres chegam à completa exaustão. Hoje vejo que tudo mudou mais ainda, e para melhor. Paulo, o pai aplicado, ficou o tempo todo à disposição da mulher e da filha, fazendo coisas que nós, de outras gerações, nem ousávamos imaginar. Cito exemplos: - o berço da criança parece um malote, que num minuto o pai abre, arma e põe em uso, com veuzinho protetor e tudo; - o banho é dado num tipo de balde como que forrado por um pano. O marido mantém a criança em posição vertical, enquanto a mãe a lava cuidadosamente. Penso comigo que houve a substituição, com vantagem, da velha bacia pelo apropriado balde. No minuto seguinte, ela já está sendo enxugada e vestida. Tudo prático, tudo fácil, desde que realizado a quatro mãos. Gostei da visita de Ana Beatriz e de ver como Paulo e Ana Luísa se mostram empenhados na sempre difícil tarefa de bem encaminhar a vida daquele serzinho ainda tão indefeso.
ALTA DEFINIÇÃO Acompanho a decisão de um torneio espanhol de futebol num desses canais de TV paga, em que se pode ler até a marca da cueca dos jogadores. Admiro não só a nitidez da imagem, mas também o aspecto do público assistente, nesta primavera europeia: a grande maioria dos homens com paletó e gravata; as mulheres vestidas até com certo luxo; crianças saudáveis e bem protegidas do frio. E isso na Espanha, um país em crise. Penso no triste aspecto da maioria das pessoas frequentadoras de nossos pobres estádios, alguns obrigados a se enquadrar no tal padrão Fifa, que terá desaparecido menos de um ano após a Copa-2014. Penso também como achávamos maravilhosa a imagem de nossos canais, nos anos heroicos das TVs Tupi e Record, com o milagroso João Fagioli impedindo que a emissora saísse do ar ou que as imagens rodassem tanto, a ponto de dar enjoo nos felizardos telespectadores ou nos incontáveis televizinhos... Alguém há de se lembrar dessas precariedades todas.
CONSULTA DE LINGUAGEM Duas pessoas, que preferem ser identificadas pelas iniciais MTLD e MAPL, acham estranha uma frase estampada em jornal da cidade: O Papa canoniza dois santos. Imagino que os dois santos sejam os papas João XXIII e João Paulo II, recentemente elevados à honra dos altares. O verbo canonizar significa inscrever nos cânones, na lista dos santos. Ora, se a notícia diz que os dois são santos, eles já tinham sido anteriormente canonizados. Não há como canonizar santos. Melhor teria sido, portanto, escrever que A Igreja canoniza dois papas. * Uma coisa puxa a outra: papa tem feminino — papisa. Vi um dia destes pela Netflix o triste filme A papisa Joana, que conta a história milenar de uma religiosa inglesa, cheia de fé e de virtudes, que teria chegado a sentar-se por dois anos no trono de São Pedro, ocultando, enquanto possível, sua condição de mulher. São grandes as controvérsias sobre sua própria existência, quanto mais sobre sua escolha como papa pelos religiosos e pelo povo de Roma. Mas o filme é tocante.
10/05/2014
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