O Sabadoyle Chega-me às mãos, enviado por anônimo remetente, um recorte de longo artigo, sem data, de Sônia Doyle, publicado na revista carioca Argumento, que me interessou sobremaneira pelas razões explicitadas no decorrer desta crônica. Foi Raul Bopp, poeta gaúcho criador do surpreendente “Cobra Norato”, quem engendrou o termo sabadoyle, designativo da reunião dos sábados à tarde na casa de Plínio Doyle, alto funcionário da Casa de Rui Barbosa, do Rio de Janeiro. Se a reunião era sabadoyle, natural que seu participantes merecessem a denominação de sabadoylianos, deles havendo os habituais e os bissextos. Esses sabadoyles iniciaram-se em 1964 e, com poucas e curtas interrupções, realizaram-se até dar-se o agravamento do estado de saúde de Plínio Doyle, aos 92 anos, em 1998. O artigo reproduz fotografia dos participantes de uma reunião das mais concorridas, provavelmente às vésperas de um Natal, data em que a freqüência aumentava e em que alguém era designado para compor na hora um texto natalino que exaltasse aquela original amizade entre pessoas de saber e de cultura. Estão na foto, entre muitos outros, os lingüistas Maximiano Carvalho da Silva e Jesus Belo Galvão; os romancistas Homero Homem, Peregrino Júnior, Bernardo Élis; os poetas Carlos Drummond de Andrade, Raul Bopp, Alphonsus de Guimaraens Filho e Mário Silva Brito; o diretor da Casa de Rui Barbosa – Américo Jacobina Lacombe.
Sônia Doyle, filha de Plínio, narra com emoção contida o surgimento e a vida daquelas singulares reuniões de bons amigos, nas quais eram vedados apenas dois assuntos – religião e política, desagregadores por excelência. Veio-me à lembrança que eu já havia participado de um sabadoyle e que a respeito escrevera uma crônica, “Em sábado nada carioca”, publicado primeiro na “Gazeta do Rio Pardo” e depois inserido no livro Tempo & Memória, de 1986.
Tínhamos ido em caravana ao Rio de Janeiro para participar da outorga do título de Cidadão Fluminense ao Dr. Oswaldo Galotti, como reconhecimento a seu trabalho em favor da memória de Euclides da Cunha e a seu devotamento à obra euclidiana. O responsável pela concretização de tão justa homenagem tinha sido Joel Bicalho Tostes, casado com Eliethe, neta de Euclides. Joel, bom amigo de São José do Rio Pardo, não só o possibilitador da homenagem a Galotti, mas também, três anos antes, o maior patrocinador do traslado para esta cidade dos restos mortais dos dois Euclides, o pai e o filho. Teve de enfrentar sérias resistências, como a da Academia Brasileira de Letras e a da cidade fluminense de Cantagalo, terra natal do grande escritor. O resto está no texto que transcrevo:
EM SÁBADO NADA CARIOCA Foi com as palavras do título que se iniciaram as impressões por nós deixadas no livro próprio, lidas ao final da reunião. Na verdade, é muito difícil relatar o que se passou na tarde de sábado, 13 de abril de 1985, no Rio de Janeiro, porque ficamos muito próximos do imponderável, do indefinível.
Hersílio Ângelo recebera o convite de seu amigo Plínio Doyle e a transmitira a Carmen Trovatto Maschietto, Rosaura e Augusta Escobar, Rodolpho Del Guerra, Oswaldo Galotti, Joel Bicalho Tostes, Dálvaro da Silva e a mim, para irmos ao sabadoyle.
Sabadoyle, mistura de sábado com Doyle, Plínio Doyle, seu criador. Reunião freqüentada por muita gente célebre, em especial Carlos Drummond de Andrade. E Pedro Nava, enquanto não se cansou de viver. Gente célebre ou culta. Nos dias de hoje, se mesmo em cidades pequenas como a nossa, vai-se perdendo a oportunidade do culto da boa prosa, era de imaginar-se que no Rio tudo fosse mais difícil ainda. E deve ser, tanto que o sabadoyle é exceção, gloriosa exceção. Em resumo, o sabadoyle é um grupo de pessoas que, como disse Drummond em ata famosa, não pretendem fazer qualquer negócio nem alterar o que quer que seja na ordem política do mundo. São pessoas que, durante três ou quatro horas, podem dar-se ao luxo de dedicar-se a uma atividade gratuita. (Lembro-me da frase de Henri Regnier que tenho perto de minha mesa: “O prazer delicioso e sempre novo de uma ocupação inutilitária”.) Plínio Doyle reserva hoje um apartamento inteiro (Rua Jaguaribe, 74, 2.º andar, Ipanema) para receber aos sábados os amigos de sempre e os adventícios de sempre, estes mutáveis a cada semana. Tudo começou há vinte anos, com três ou quatro pessoas. Já em cima da porta de entrada, estão aboletados os primeiros livros, que dominam todas as salas, todos os quartos, do piso ao teto, formando a maior biblioteca de literatura brasileira de que se tem notícia. Entra-se, cumprimenta-se o gentil dono da casa e a todos os presentes (uns trinta) e cai-se na prosa ou no silêncio, sem nenhum formalismo ou roteiro. Trocam-se livros, impressões e endereços. Consulta-se qualquer volume, remexe-se em pastas de recortes preciosos. (Só de Euclides há três delas, com muitos trabalhos saídos do nosso Ciclo de Estudos.) - E o Drummond veio hoje? – arrisca um do nosso grupo. - Veio, está lá pra dentro. E lá fomos a um dos quartos-bibliotecas a cumprimentar o poeta maior. Polido, afeito às boas palavras que todos lhe dedicamos, deixa-se fotografar conosco, responde ao que lhe perguntamos. Personagens de expressão nacional compartilham democraticamente lugares no sofá. Escritor e gramático discreteiam em paz; jornalistas e gente do teatro se entendem. Amável e interessado, Plínio Doyle, preso a uma cadeira, a tudo assiste, assim como Olímpio José Garcia de Matos, bibliotecário-mestre-de-cerimônias do sabadoyle, olhos sempre atentos, cioso do acervo incomparável. Alguém se refere à coleção de corujas que se encontram em todos os cômodos. Símbolo da sabedoria? - Nada disso, explica Doyle. Apenas corujas: gosto delas. Só isso. O cafezinho é servido por uma senhora que já trabalhava com a família Doyle quando o grupinho de três ou quatro amigos iniciou a confraria. Drummond já saíra à francesa, usando passagem direta dos quartos para o elevador. Sempre faz assim, garantem. Aí começa o momento quase formal da reunião: a leitura da ata do dia. Existem atas famosas; recebemos separatas impressas de três, referentes às reuniões do últimos Natais. O redator lê-a conforme as regras da casa: silêncio geral, o livro próprio apoiado numa espécie de estante em plano inclinado, o leitoril. Quase todo o texto é dedicado à nossa visita, a Euclides da Cunha. Então nos cabe responder. Falo pouca coisa e depois leio a impressão lançada em letra manuscrita no livro a isso destinado. Era uma página que, olhando pela janela a chuva fina cair, havíamos elaborado Rodolpho, Dálvaro e eu. Começava assim: “Em sábado nada carioca, de sol oculto...” Parece que gostaram; ao menos, aplaudiram e comentaram. Oficialmente, estava encerrado o sabadoyle. Penso em como terá sido difícil concretizar algo assim. Para muita gente é impensável a obrigatoriedade de reuniões a qualquer hora, quanto mais em fins de semana. Aí está o segredo sabadoyle. Vão a ele pessoas que encontram naquele suave convívio uma atividade muito civilizada, a melhor maneira de gozarem as horas dos sábados à tarde.
10/05/2008
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