Lembrando J.O.

 

Razões muito especiais me impediram de saber em tempo hábil da morte de José Oswaldo Junqueira e de participar das homenagens que lhe foram justamente prestadas.

Mantive com ele um tipo incomum de relacionamento. Em 1988, um de seus netos me procurou para contratar meus serviços como organizador de vasta documentação jornalística e fotográfica ligada à vida de José Oswaldo e à sua atividade como criador de cavalos da raça manga-larga.

Aceito o convite, durante alguns meses, talvez quatro, falei bastante com ele, com seus familiares, amigos e funcionários.

Antes disso, nós havíamos conversado ocasionalmente em casa do Prof. Hersílio Ângelo, meu compadre e cunhado dele. Ficara em mim a impressão de pessoa polida, respeitosa e com uma qualidade rara: sabia não só expor bem suas idéias como ouvir com atenção as dos outros. José Oswaldo e Hersílio eram do mesmo ano: 1910 e tinham uma recíproca e muito visível admiração.

E assim, fui por inúmeras vezes à Fazenda Santa Amélia conversar com ele, ver seus objetos pessoais, gravar depoimentos tanto dele quanto de quem o cercava.

Modesto, mas cioso de seu papel como fazendeiro e criador de cavalos, tinha aquilo que Camões resumiu muito bem na frase “saber de experiências feito”. Deu várias sugestões a meu escrito e se preocupou sempre em que a verdade prevalecesse. Acreditava que o convívio com cavalos era forma  infalível de combater o estresse, além de auxiliar na recuperação da sociabilidade de crianças problemáticas.

Não é minha intenção reproduzir nenhum trecho do texto que lhe preparei (mais de cem laudas jornalísticas), entregue a seu neto e ainda inédito. Acrescido de material fotográfico, daria um livro de duzentas e tantas páginas.

Não guardei cópia integral para mim porque entendi que se tratava de assunto pessoal e familiar, não me cabendo, portanto, dar divulgação a nenhuma de suas partes. Pena que naquele já longínquo 1988 eu não tivesse nenhuma intimidade com um computador que me poderia ter salvo o interessante texto, entregue apenas datilografado a quem de direito.

Quando o Prof. Hersílio soube da aceitação daquele incomum encargo, disse-me que então eu seria um diascevasta  e sem mais demora me explicou o significado daquele estranho vocábulo de origem grega de que eu não tinha nenhuma notícia: quem  se encarrega de revisar criticamente trabalhos alheios. E disse-me mais: a atividade do diascevasta  era a diásceva, termo que só fui encontrar em velhos dicionários portugueses. O Aurélio do Século XXI não o consigna, mas o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras acolhe os dois. José Oswaldo achou muito engraçada a preocupação de Hersílio e algumas vezes, com ar de brincadeira, me perguntava  qual mesmo era a palavra difícil que ninguém conhecia, a não ser o cunhado letrado...

Fiando-me apenas em impressões que me ficaram na memória, quero compartilhar com  seus familiares e amigos a forte sensação de perda que sua morte representa, apesar dos seus noventa e seis anos bem vividos.

Ele tinha orgulho de ser um homem de trabalho, que começou muito cedo a tomar decisões próprias, levado por duas circunstâncias: a morte repentina do pai, João Baptista Junqueira Sobrinho,  ocorrida em 1925, num desastre automobilístico, e a confiança que lhe depositou o avô paterno, Saint-Clair de Andrade Junqueira, passando-lhe uma fazenda – o Barreirinho -- e   tornando-o responsável por todo o complicado processo de colheita, beneficiamento e embarque de grandes quantidades de café.

Esse avô paterno só encontra um rival na memória e no reconhecimento de J.O. – seu parente de Orlândia, João Francisco Diniz Junqueira.  Foi ele quem lhe reservou um cavalo de raça que ainda estava por nascer e no qual José Oswaldo colocou o nome que bem descreveu sua ansiedade nos longos meses daquela gestação: Pensamento.

Quando falava no Turbante, seu inigualável reprodutor, os olhos de J.O. brilhavam e sempre ele tinha uma história, um incidente, um fato novo para contar. Fiquei com a impressão de que não havia assunto mais agradável a ele.

Apreciei muito os pequenos episódios jocosos que ele contava com  visível prazer. Selecionei  alguns deles:

Ele e o seu parente de Orlândia gostavam de sair em longas cavalgadas, enquanto conversavam sobre todos e sobre tudo. Numa dessas excursões, em que campeavam uma égua extraviada,  deram com uma daquelas muitas estaçõezinhas da Mojiana, situada no meio do nada. Apearam dos animais e encontraram o chefe (e único funcionário) tirando uma soneca num banco da plataforma. Depois dos cumprimentos, das gentilezas, o chefe se achou em condições de lhes fazer uma séria indagação:

-- Os senhores são Junqueira, não são?

-- Somos sim. Como é que o senhor percebeu?

O chefe deu um sorriso largo e explicou:

-- Com todo o respeito lhes digo que é fácil isso. Basta ver como os senhores  cuidam mais dos  arreios da montaria do que da própria roupa do corpo... 

Sentados uma tarde na varanda da Santa Amélia, J.O. me disse em resposta ao meu comentário sobre como a vista dali era bonita:

-- É, e pode ficar melhor. Existe um projeto de inundar parte da fazenda para a construção de uma hidrelétrica. A água pode chegar até aqui e então o senhor virá para cá esquiando...

Ele morreu antes da inundação, que talvez nem se efetive mais.

A história do negociante de São Sebastião da Grama é especial:

Os fazendeiros compravam dele e só acertavam contas de tempos em tempos, até de ano em ano.

O negociante estava à porta de seu estabelecimento conversando com seu balconista em dia de pouco movimento:

-- Veja, lá vai o administrador da fazenda tal. Marque um saco de farinha na conta dela.

-- Mas ele nem parou aqui... – argumentou o balconista.  

-- Não parou porque não quis. Marque o saco de farinha, e pronto.

Esse fino senso de humor era uma constante em sua prosa. Tinha grande admiração por outro parente próximo, proprietário de fazenda entre São José e Grama. Um dia, J.O. notou que o telefone do tal parente estava fora do gancho  e, portanto, ele não receberia chamadas de ninguém.

-- Posso colocar o fone no lugar?

-- Não, não. Instalei telefone para meu uso, não para uso dos outros...

..............

Vi José Oswaldo Junqueira pela última vez quando, no carro estacionado,  ele esperava pacientemente que a filha Zilá lhe fosse comprar na banca próxima algumas revistas de palavras cruzadas, seu hobby de longa data. Com a discrição que lhe era própria, tratou-me com afabilidade e se lembrou  de nossas longas conversas e do texto resultante delas, ao que parece de seu agrado.

 

10/03/2007
(emelauria@uol.com.br)

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