Carpe diem

 

Talvez não haja expressão latina de maior uso na atualidade do que a que dá título a esta crônica. De fato, emprega-se o carpe diem a propósito do tudo, subjacente na maioria das vezes a ideia de que é necessário gozar a vida, a qualquer preço. Se existe restaurante com este nome, também  existe perfume para homem... Um iate de luxo foi assim batizado, como também uma livraria o adotou por adequado título... Motéis e casas de diversões se encantaram com a denominação, portadora de promessas mil.

O que contribuiu de forma decisiva para a recolocação em voga desta expressão a um tempo breve, sonora e um tanto misteriosa foi o filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, de 1989, dirigido por Peter Weir e protagonizado pelo falecido Robin Williams.

Williams interpreta um professor de Literatura que vai lecionar na Welton Academy, onde fora aluno em outros tempos.  A escola está ainda tradicionalmente inserida num sistema acadêmico inglês, rígido e autoritário. O novo professor toma a si a tarefa de quebrar não só os estereótipos educacionais, mas também a de ajudar seus jovens alunos a superar as inúmeras barreiras impostas pela sociedade, pela família e pelas normas educacionais vigentes. Em suma: propõe que eles pensem por si mesmos. Os resultados, apesar dos amargos contratempos, deixaram marcas profundas nos corações e mentes daqueles estudantes idealistas e entusiasmados. Ao professor, só lhe resta bater em retirada da escola, ainda não preparada para receber maiores inovações em seu modo de encarar o mundo.

Carpe é forma imperativa do verbo cárpere (= colher, aproveitar) e diem é o acusativo do substantivo dies, diei, da 5.ª declinação latina. Literalmente quer dizer “colhe o dia”, mas admite uma interpretação mais elástica: “aproveita o dia de hoje”, ou de modo mais livre ainda: “colhe o dia de hoje como se fosse um fruto maduro que amanhã estará podre”.

O espírito da ode horaciana cai particularmente bem entre os árcades, poetas do Neoclassicismo do século XVIII, que pregam o retorno à vida simples dos pastores da Arcádia (região da Grécia) e a fruição de todas as coisas naturais que a vida possa oferecer. Eles expressam constantemente a certeza que têm a respeito da fugacidade das horas. Daí o apelo, muito sentido em Tomás Antônio Gonzaga que, como Dirceu, na força dos seus quarenta e tantos anos, insiste com Marília, sua adolescente musa, a não perderem tempo, aquele tempo que fugia célere.

 

Que havemos de esperar, Marília bela?

Que vão passando os florescentes dias?

As glórias que vêm tarde já vêm frias,

E pode, enfim, mudar-se nossa estrela.

Ah! Não, minha Marília,

Aproveite-se o tempo, antes que faça

O estrago de roubar ao corpo as forças,

E ao semblante a graça!

(Final da Lira XIV)

 

Os temores de Dirceu acabaram por se concretizar: ele, preso por causa de sua participação na Inconfidência Mineira, mais tarde degredado para a África. Ela, em Vila Rica, eternamente à espera do amado, até que morreu avançada em idade.

Na poesia de Gonzaga (o mais lido dos poetas de língua portuguesa, depois de Camões) são constantes os traços do horacismo temático: “Sobre as nossas cabeças, / sem que o possam deter,/o tempo corre...” – Ou: “ da pálida morte a mão tirana/ arrasa os edifícios dos Augustos,/ e arrasa  a vil choupana...”

Carpe diem, Baby foi música de sucesso da banda Metallica em 1997: o ouvinte é encorajado a espremer e chupar o dia (come, squeeze and suck the day).

Por último a banda Dream Theater  mostra sua adesão à filosofia do prazer no disco A change of seasons  (uma mudança de estações), onde chega a incluir falas do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”.

É de se refletir sobre o longo caminho percorrido pela singela expressão que, engendrada numa ode por Horácio  há mais de dois mil anos, ainda impressiona aquelas muitas pessoas para as quais a valorização do instante, sem apego ao passado e sem medo algum de caminhar para o futuro, é o único modo de se dar a cada segundo da vida o seu sentido mais profundo, porque na verdade é esse precário presente o único tempo disponível pelo homem.

De se considerar, portanto, a notável expressão de Santo Tomás de Aquino ao identificar o tempo como a própria vida da alma que se estende para o passado e para o futuro.

De que modo – pergunta ele – diminui-se e consuma-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que não é mais, senão porque na alma existem as três coisas -  passado, presente e futuro?

Ao homem, através dos séculos, só tem sido dado abismar-se ante esses problemas insolúveis e conferir ao presente o máximo de seu valor.

Carpe diem, pois.

 

10/02/2018
(emelauria@uol.com.br)

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