Vidros de aumento

  

Não poucas pessoas me indagaram sobre a razão do título de meu recente livro. Por que “Vidro de Aumento” e não “Lente de Aumento”, por exemplo?

Primeiro porque os romanos  já haviam descoberto  não adiantar quase nunca discutir a respeito de preferências pessoais, tanto que até sintetizaram essa descoberta numa frase resistente aos milênios: De gustibus non disputantur, o que em português corrente se pode traduzir por o que seria do amarelo se todos os gostos fossem iguais?  Minha mulher adora o amarelo, desde o ouro até o limão-galego, passando pelos tons ovo e bandeira. Acha com razão que tudo dessa cor lhe cai bem.

De minha parte, prefiro o azul em todos os seus tons, inclusive aqueles que penso serem azuis e já são quase verdes. Não chega a ser daltonismo, mas quase.

Além do mais, o termo vidro é mais abrangente, compreendendo todos os tipos de lentes, desde uma de simples lupa até as de poderosos telescópios.

 

REALIDADE & FICÇÃO

Numa aula do conteúdo “Letras Integradas”, do  4.° Semestre do curso na UNIP, fiz experiência que alguns poderiam classificar de mal-intencionada, como a de forçar vendas.  Distribuí a cada aluno, cerca de trinta, um exemplar emprestado deste   meu livro, com diversas finalidades, inclusive a cada vez mais rara de se ler em classe com a presença do próprio autor do texto. Queria saber que tipo de dificuldades pode ocorrer, desde explicação do sentido de vocábulos, de frases, de acidentes morfossintáticos,  de citações, de contexto histórico-social... Fiquei ali à disposição dos leitores, esclarecendo todas as dúvidas e curiosidades. Ao fim da aula, deixei que, quem quisesse, levasse consigo o exemplar, para complementar a leitura e levantar novas questões de análise e interpretação. Por último, na aula seguinte pedi  um breve comentário pessoal sobre o que se havia lido.

Das crônicas espontaneamente citadas, nenhuma superou  a “Realidade e ficção” (pág. 183), em que comento texto da semana anterior, que tem como personagem um sessentão  apaixonado e inimigo das férias. Como haviam feito os leitores do jornal, esses alunos do curso de Letras também  queriam saber quem era esse sujeito, de quem dei pistas apenas levantadoras de hipóteses, sem nenhuma conclusão. Nem sei se aceitaram que se tratava de criação ficcional, soma talvez de qualidades e defeitos de várias pessoas, não necessariamente solteironas. Quem escreve tem o direito (e por vezes o dever) de modificar a realidade, tirando-lhe os contornos mais nítidos, fundindo e separando personagens e/ou situações. Tudo porque assim como a arte imita a vida, também a vida imita a arte. E com isso os estados e emoções descritos em situações ficcionais podem ter perfeita aplicabilidade em situações reais. É que há textos ficcionais tão perfeitos, que seria pura perda de tempo ficar criando outros que expressassem com igual força situações e sensações verdadeiramente vividas.

Os alunos de Letras gostaram desta maneira de ver as coisas e chegaram até a exemplificar usos que fizeram de trechos de cartas e de versos alheios que lhes haviam tocado lá no fundo do coração.

A bem da verdade, devo dizer que uma boa meia dúzia daqueles leitores compulsórios adquiriu o livro, a preço justamente subsidiado pelo autor.

      

CONVERSA AFIADA

Agradável e até desafiadora a prosa cheia de profundezas e legalengas que na terça-feira pudemos travar na calçada do Centro Cultural  Batista Folharini. Na hora mesma em que os ponteiros apontavam para o infinito (como se dizia na Rádio Aparecida) e a família Folharini iniciava o ritual  de fechar as portas do estabelecimento e partir em competitiva corrida rumo ao nada frugal almoço, estávamos ali, meio enxotados, eu, Paulo Flamínio, Fernando de Sylos e Willian Fagiolo. Claro que o assunto principal da pauta girava em torno do Memorial para Euclides da Cunha, idéia que Willian vem trabalhando com total dedicação.

Assuntos, por mais sérios que sejam, sempre dão margem a comentários pouco ortodoxos. Assim foi que, tomando por base a foto de Willian, com seu metro e noventa, tendo ao lado Oscar Niemeyer, agora com seu metro e sessenta, se tanto, logo se armou a inevitável indagação:

-- Quem é aquele sujeitinho miudinho ao lado do Willian?

(A história original tinha um visitante qualquer, ao lado de um papa.)

Oscar Niemeyer, segundo o consenso daqueles palradores, não pode morrer (apesar de a caminho dos cem anos) sem antes elaborar detalhadamente  o projeto do Memorial.

Aí alguém já arranja solução até para essa indesejada e desagradável contingência:

-- Se ele morrer, paciência. Já temos até gente aqui do Centro Cultural em condições de receber os croquis  psicografados. Já imaginou as folhas todas tremidinhas, com as imagens captadas do além pelo *****  ? (Ainda não tenho autorização de tornar público o nome do eventual responsável por isso.)

 

O PRAZER DA RELEITURA

Meio  por acaso, pude reler com prazer e proveito o livro Machado de Assis, de Agripino Grieco, Rio de Janeiro, Conquista, 3.ª edição, 1960.

Ele garante que execra Memórias Póstumas de Brás Cubas, “livro de fama usurpada, falsa obra-prima”. “E lamentem o seu cacoete de metáforas: paixões sem freio, o corcel do cego desejo, torceu a rédea à conversação, único freio de uma paixão sem freio”. “Prosaico o abuso das palavras ‘orelha’ e ‘nariz’ e horrível a expressão ‘os olhos babavam-se-lhe de orgulho’.” E vai por aí fora.

Em compensação, escreve isto a respeito de Dom Casmurro: “Se me exilassem para sempre do Brasil, permitindo-me levar na bagagem apenas cinco livros nacionais, é evidente que não dispensaria o meu Alencar, o meu Castro Alves, Pompéia, Euclides, mas também não dispensaria este romance do não totalmente meu Machado de Assis”.

O livro todo de Grieco é um exercício cada vez mais raro de crítica impressionista, com o coração disputando as frases com o cérebro, sem nenhum ranço de intelectualismo acadêmico, sem nenhuma tese embutida que exija defesa a qualquer preço.

Bom Agripino Grieco, mestre do epigrama e da polêmica, expoente da sátira brasileira, biblioteca em marcha  - na opinião da crítica amiga. A inimiga não lhe perdoa a liberdade intelectual, certa falta do senso de medida e de papas na língua.

Lembro-me dele na sacada da sede da Associação Atlética Rio-Pardense fazendo os seus acompanhantes rir de sua verve inesgotável. Isso em 14 de agosto de 1955, 56, por aí.

Tempus fugit – já disse alguém.

 

09/12/2006
(emelauria@uol.com.br)

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