Euclides, Olímpio e o ensaio
Assim, relembrados os aspectos e as particularidades que euclidianamente justificariam minha presença aqui e agora, torna-se fácil chegar a que não teria podido eu escolher por patrono outro que não Olímpio de Sousa Andrade, o renovador das técnicas de abordagem de Os sertões. Com a eleição natural que lhe fizeram minha razão e meu sentimento, completa-se o largo círculo de implicações que propiciou, amparou e, espero, justificou minha entrada para esta casa de cultura e de patriotismo. Paulista de São José do Rio Pardo, nasceu Olímpio de Sousa Andrade a 19 de dezembro de 1914, na Fazenda Fartura. Sextoneto do Marquês de Baependi, bisneto de Antônio Marçal Nogueira de Barros, um dos fundadores da cidade; filho de Antônio Olímpio Nogueira de Andrade e Áurea Ribeiro de Sousa Andrade, Olímpio era casado com D. Noêmia Ferreira de Andrade, irmã do diretor-redator-chefe de O Estado de S. Paulo, Oliveiros S. Ferreira. Tinha dois filhos: Maria Aparecida Ferreira de Andrade, professora e colaboradora de O Globo, do Rio de Janeiro, e Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, programador visual na Biblioteca Nacional. Morreu no dia 24 de setembro de 1980, estando sepultado no cemitério do Catumbi, no Rio de Janeiro. Já nos primórdios da juventude, Olímpio começou a interessar-se pela literatura brasileira, quando ainda cursava o secundário em Casa Branca, onde também se iniciou no jornalismo. Em São Paulo trabalhou em A Noite, colaborando ainda no mensário O Planalto, onde publicou o seu primeiro artigo definitivo sobre Euclides e Os sertões. Esse trabalho foi anexado à edição norte-americana do livro, traduzido por Samuel Putnam. Foi, no entanto, com ensaio sobre Joaquim Nabuco que fez a sua estreia em livro, conquistando o Prêmio UNESCO, em 1949 – Joaquim Nabuco e o Pan-Americanismo: o Brasil na América, na 2ª edição, 1978, reduzido o título para Joaquim Nabuco e o Brasil na América. Olímpio residia no Rio de Janeiro, e apenas no ano de 1960 publicaria sua primeira e mais completa contribuição à bibliografia euclidiana, a História e Interpretação de “Os Sertões”, produto da paixão pela obra de Euclides da Cunha, a qual surgiu na proporção direta do seu interesse pelos problemas brasileiros. “Livro artesanal”, como diria Hélio Damante, “fruto de muitos anos de pesquisa, parece escrito de um só fôlego. Se por vezes cede à retórica, tentação inseparável do estudo de Os Sertões, não é na retórica, mas na análise, nos fatos, que vai até o fim na interpretação do nosso épico.” (Do polêmico artigo “Olímpio de Sousa Andrade, o último euclidiano”, em O Estado de S. Paulo, 25 de setembro de 1980.) Consagrada por três premiações sucessivas: da Academia Paulista de Letras, do Pen Clube do Brasil e da Câmara Brasileira do Livro, a obra não é uma biografia de Euclides, mas, principalmente, uma “biografia” de Os sertões, uma pacienciosa desmontagem do grande livro que, depois de suficientemente acrescido de tantas peças perdidas no tempo, de lances da vida e do espírito de Euclides, é de novo montado com esses elementos extratexto que, contrariando as tendências da crítica moderna (preocupada antes com o produto literário final e não com suas vicissitudes de construção), fornecem informações capazes de fazer o estudioso melhor compreender a gênese do livro, sua história interna, os dramas e as dores do autor na sua elaboração. Nesta ousadia nova e velha, de reingressar num abandonado historicismo como elemento subsidiário de compreensão de um texto consagrado, nisso está o divisor entre o crítico e o ensaísta. Ao crítico tem cabido desmontar, examinar, avaliar e montar de novo o texto em estudo. O ensaísta desmonta, examina, avalia, acrescenta e monta, de tal forma que uma obra submetida à apreciação do ensaísta digno do nome jamais retorna a mesma depois de um exame acurado. É que sobre ela (ou dentro dela) o ensaísta realizou um exercício de coautoria, evidenciando não só as obscuridades do autor, mas iluminando certos contornos que até ao autor costumam passar despercebidos. Ou como judiciosamente afirmaria Hersílio Ângelo no artigo “Olímpio”, estampado na Gazeta do Rio Pardo de 28 de setembro de 1980: (Olímpio) atravessou a vida demonstrando por palavras e obras, que a leitura de Euclides da Cunha sempre nos acrescenta alguma coisa. Gostava de repetir o pensamento de Jorge de Lima: “Nunca se volta de Euclides com as mãos abanando”. E fez do pensamento ação. Muitas vezes, como um sertanejo, embrenhou-se nas terras agrestes de Os Sertões, de Contrastes e Confrontos, de À Margem da História, e de lá voltou com o coração cheio de brasilidade e de humanidade. E foi assim, dilatando o próprio coração, que ele escreveu, entre outras obras: História e Interpretação de “Os Sertões” (1960), guia solícito e vívido para os iniciados na obra euclidiana; Euclides da Cunha - Antologia (1966), painel didático e agradável de suas melhores páginas; Euclides da Cunha - Canudos e Inéditos (1967), salvando do olvido peças valiosas; “Sertões” (edição escolar, 1970), com introdução, seleção e vocabulário (dois mil verbetes, destinados ao curso médio); “Estudos Introdutórios” (para a edição Aguilar, 1966); Euclides da Cunha - Caderneta de Campo (Cultrix, 1975); “Nota à Margem de Contrastes e Confrontos” (Cultrix, 1975); e, inconcluso, Euclides da Cunha - Depois de Os Sertões - visão de tudo quanto se seguiu ao “livro vingador”. Esse conjunto de obras já constituiu, seguramente, a mais vasta tentativa de exegese euclidiana. Muito superficial ficaria minha tarefa de estudar meu patrono se não tentasse, ainda que de modo e com métodos imperfeitos, captar a atitude mental de Olímpio, colocando-o com a possível precisão no lugar que merece ocupar na cultura brasileira. Menos ainda que Euclides, Olímpio faz muito pouco uso do elemento ficcional, o que, numa visão restrita muito em voga nos dias de hoje, seria o único passaporte válido para que uma produção escrita pudesse adentrar o mundo da literatura. Ou seja, num sentido particular, gratíssimo à crítica estética, comporiam o núcleo da literatura em prosa tão-somente aquelas obras que se expressassem nas convizinhanças do conto, da novela e do romance. Ora, postura assim toda calcada na presença compulsória do elemento ficcional apresenta como consequência primeira a impossibilidade de haver lugar, na área da literatura, para obras fundamentais do espírito humano, que, não versando matéria explícita da ciência, da filosofia ou da religião, venceram o tempo pela genialidade de sua composição, não se conformando embora aos padrões comuns de classificação. Em face dessa impossibilidade de se incluírem obras de interesse literário na angústia classificatória dessas poucas formas (o conto, a novela e o romance), foi que se aperfeiçoou o conceito de expressões literárias híbridas, capazes de abrigar no campo específico da literatura muitas obras que, não versando com prioridade ou exclusividade temas contíguos ao ficcional ou imaginativo, apresentam, todavia, qualificações de literaridade. Entre essas obras que, não sendo ficcionais, nem assim fogem ao âmbito da literatura, destacam-se aquelas cuja expressão pode ser catalogada como ensaio, crônica, oratória, jornalismo, historiografia e crítica literária. Cada uma delas, a seu modo, aproxima-se mais ou menos do núcleo da literatura. Bastaria lembrar como a crônica, no sentido que contemporaneamente assumiu e mantém no Brasil, é atividade que muitas vezes atinge as culminâncias da criação literária, graças aos seus usos da conotação, às suas avaliações subjetivas, às suas incursões no terreno do lírico, ainda ou principalmente quando trate de aspectos só na aparência dos mais prosaicos da realidade cotidiana. Não vai exagero no afirmar-se que muito da melhor “poesia” brasileira de nossos tempos se encontra com mais frequência nas páginas dos nossos grandes cronistas, do que nas produções, tantas vezes herméticas e elitistas, de nossos poetas. Que se dizer, então, do visível entrelaçamento existente entre a oratória e a literatura, entre o teatro e a literatura, entre os melhores textos históricos e a literatura? Tais e tantas são as aproximações, que o mais das vezes a linha divisória entre eles e a literatura não passa de mero juízo individual. Assim, assuntos jornalística ou historicamente tratados emergem dos jornais, das revistas, do livro especializado para, com total merecimento, servirem de exemplo do melhor padrão artístico-literário; de igual modo, muitos discursos melhor se apreciam quando submetidos às exigências do texto literário. Nesta Casa tomam assento excelentes cultores da palavra falada ou escrita que talvez nem sequer na juventude hajam prestado sua homenagem às musas ou aos rasgos ficcionais. São, como Euclides da Cunha e Olímpio de Sousa Andrade, ensaístas e por isso também interessam à literatura, quer pelos temas que tratam, quer pela perfeição formal com que os revestem. No decurso dos séculos, essa expressão literária híbrida sofreu nítida evolução, transitando do pessoalismo de Montaigne (ensaios de) para o impessoalismo (ensaios sobre), com a presença em sua textura de um resíduo indispensável; o ensaísta assume sempre uma disposição de espírito caracterizada pela liberdade crítica. Com relação a Euclides da Cunha, essa disposição se evidenciou de tal modo, que chegou mesmo a possibilitar a exata localização do escritor na periodologia literária brasileira. Porque, sem dúvida, é o exercício inovador da liberdade crítica que marca o nosso Pré-Modernismo, ainda quando o escritor mantenha estreitos laços com a ficção propriamente dita. É pela prerrogativa de uso da liberdade crítica que puderam surgir no Brasil obras da contundência social dos escritos de Lima Barreto, mormente O triste fim de Policarpo Quaresma; de Monteiro Lobato com sua radiografia impiedosa e irônica do caboclo paulista enquistado nas suas cidades mortas; de Graça Aranha trazendo para a literatura o problema socioantropológico da adaptação do imigrante alemão no Espírito Santo, que é o tema central de Canaã, temperado pelas digressões maniqueístas de Milkau e Lentz. E onde o ensaísta em Olímpio de Sousa Andrade? De início, na atitude crítica livre e firme. Se Euclides sempre se mostra comprometido com a ciência de seu tempo, com a História, em particular, o compromisso de Olímpio foi o de deitar luzes a documentos que estavam à disposição, a notícias que estavam à disposição, a depoimentos que poderiam ser suscitados por outros, aos próprios livros de Euclides, que estavam à disposição de todos. No entanto, desse acervo disponível por todos, Olímpio, e só Olímpio, recriou cidades, ressuscitou vozes esquecidas, uniu fatos e circunstâncias, deu enfim, nova fibratura ao próprio texto alheio. A leitura da “Introdução” da História e Interpretação de Os Sertões fornece a exata medida desse exteriorizar de uma razão que critica livre e firmemente: Foi o que tentamos fazer no presente trabalho, menos biografia do que exercícios de compreensão da obra, cuja observação, entretanto, julgamos de bom aviso aparelhar com a investigação da vida do autor, até onde esta fosse capaz de juntar esclarecimentos à realização de Os Sertões (p. 8). Logo abaixo vem uma hipótese de trabalho: Tudo parece mostrar, no homem, alguma coisa além do que conhecemos e, no escritor, algo das relações com a sua arte que, por certo, desconhecíamos (ib.). E a conclusão, à página 12: Esperamos ter logrado aproximar-nos um pouquinho mais do homem e, principalmente, da obra que escreveu espichando as noites e os dias de trabalho fecundo e incansável, na manutenção do grande diálogo que armou, da natureza com a história, mas certos de que tanto o escritor como o seu livro perturbador permanecem, como sempre permanecerão, longínquos, distantes, enigmáticos para nós. Bem menos distantes, bem menos enigmáticos, diga-se a bem da verdade. É que Olímpio, como todo o lidador de palavras, também enfrentou o indizível, embora com ele batalhasse, mal rompiam as manhãs. Sente-se nas palavras de Olímpio a “paixão” ensaística, sem a qual a sua obra não se realizaria, tal como as melhores páginas euclidianas perderiam todo o impulso, toda a consistência, toda a persuasão. Estou pensando especialmente em “Judas-Ahsverus” que, mesmo são sendo realização ficcional pura, é a mais corajosa incursão euclidiana no terreno da emotividade e da sujetividade e, quem sabe, da autobiografia moral. Aventura do espírito, é o ensaio veículo expressivo dos inconformados, dos insatisfeitos da ordem reinante ou das ideias feitas. O estudo da gênese de Os sertões mostra com clareza que sua elaboração seguiu demorados e diferentes passos, antes de a mensagem assumir a forma definitiva, assim mesmo poucas vezes do pleno agrado de Euclides. Poder-se-á estabelecer no roteiro de elaboração do livro os seguintes momentos: primeiro as anotações constantes da Caderneta de campo, que o nosso Olímpio deu a lume em 1975; depois a redação vigente em Canudos (Diário de uma expedição), posta a público em 1939, com substanciosa introdução de outro belo ensaísta, Gilberto Freire; por último o texto do livro, quase sempre a resultante de aturados exercícios de aperfeiçoamento, repetidos à exaustão. O nosso mesmo Olímpio, em capítulo barrocamente intitulado “O barroco no vale, com legenda em verso de Shakespeare”, nos dá conta desse burilamento euclidiano através da transcrição justalinear que faz entre o “Excerto de um livro inédito” (O Estado de S. Paulo, 19 de janeiro de 1898) e “O sertanejo - O jagunço - O gaúcho” (Os sertões, início do capítulo III da segunda parte). Vale a pena relembrar, ao menos, a redação inicial da talvez mais citada das frases euclidianas. Está no excerto: “Assim, o sertanejo é um forte cuja energia contrasta o raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral”. Que no texto definitivo, sabe-se lá à custa de que torturadas tentativas, está assim: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Ganhou, sem dúvida, em síntese e energia. Quanto ao estado de espírito “insatisfação com a ordem reinante ou com as ideias feitas”, apanágio dos ensaístas, a biografia de Euclides e a história interna de sua produção escrita dão permanentes provas disso. Insatisfeito no lar e na profissão, insatisfeito no posicionamento político e filosófico, insatisfeito com a monarquia e logo depois insatisfeito com a república, insatisfeito com a versão geralmente aceita de que Canudos era expressão revolucionária de inspiração monárquica, lá foi Euclides elucidar o erro generalizado. Não há, creio, página mais representativa dessa insatisfação reinante e com as ideias feitas do que a originalíssima concepção euclidiana de uma situação visível a todos, e por quase todos incompreendida, mal avaliada: na Amazônia do começo do século XX ter o sertanejo realizado “uma tremenda anomalia”: trabalhar para escravizar-se. Da observação direta dos fatos e da expressão do seu insatisfeito estado de espírito, nasceu em Euclides sua página de caráter mais lucidamente ensaístico. Já o nosso Olímpio empreendeu pesquisas que ora desmentem afirmações tidas como de recibo passado; ora revelam coisas não suspeitadas, como um Euclides que não era positivista convicto; de um Euclides que participou do golpe de Floriano Peixoto; de um Euclides que, geopolítico avant la lettre, previu o surto de progresso no Oeste paulista, vislumbrou (porque sabia ler mapas) uma então impensável guerra entre os Estados Unidos e o Japão; que profetizou a ascensão da Rússia. Foi, portanto, pela fortaleza do seu espírito ensaístico que Olímpio de Sousa Andrade pôde fugir à tentação de compor uma biografia de Euclides e dedicar-se aos estudos da obra euclidiana como autêntico ensaísta, ou seja, como um problematizador, cujo espaço problemático é o mundo, cujo ente problemático é o homem, cujo fenômeno problemático é a cultura. De suas palavras quase técnicas, quase impessoais, reponta, não raras vezes, a palavra transfigurada, como uma espécie de rubrica que o escritor-artista impõe aqui e ali, no corpo da obra, lembrando a seu leitor e a si mesmo: “Debaixo da aparente frieza deste relato, há uma inteligência que vibra e um coração que pulsa forte. Deixai a vossa inteligência seguir os passos do meu esforço e não vos espanteis se também o vosso coração se emocionar com o que escrevo”. E assim, nessa dificultosa associação entre a razão documentada e a verdade mais secreta que a intuição arma e conduz, Olímpio reorganizou a seu modo o universo euclidiano, de maneira a não se perceber onde termina o estudo sobre o grande livro e onde começa a conjectura sobre o autor. Tal como Euclides fizera em relação ao consórcio entre a ciência e a arte, no prefácio de Poemas e canções, de Vicente de Carvalho, Olímpio concretiza a simbiose entre o pesquisador armado e o pensador sensível. O resultado não poderia ser mais apreciável, a ponto de se poder aceitar sem insuperáveis objeções a assertiva na aparência exagerada de Hélio Damante: Olímpio de Sousa Andrade, o último euclidiano, ou seja, o escritor brasileiro que se consagrou inteiramente ao estudo e pesquisa da obra de Euclides da Cunha. Outros haverá, sejamos justos, não, porém, com a mesma dedicação e com o mesmo fruto. Não foi um biógrafo de Euclides, ou mais um biógrafo. Foi, digamos, o seu genealogista literário, a tal ponto que não se poderá escrever a biografia definitiva de Euclides da Cunha, à procura de seu autor na perspectiva do tempo, sem a ajuda de Olímpio de Sousa Andrade. (Em O Estado de S. Paulo, 25/9/1980.) Em Olímpio, tal qual em Euclides e em tantos ensaístas dignos do nome, a perpétua querela que travam erudição e ensaio é por este vencida. Em ambos, o ensaio, como atitude mental inimitável, traz consigo a inconfundibilidade do seu texto; imitar um ensaio será sempre uma tarefa impossível, pela falta do senso de descoberta, que jamais se repete. Em suma: Como em nenhuma página de Euclides se faz ausente o apaixonado defensor das teses democráticas e progressistas, ainda quando versa a mais árida matéria (a controvérsia que envolveu o Peru e a Bolívia em questões de limites territoriais, por exemplo); como o campo dos interesses culturais de Euclides da Cunha assumiu extensão até então desconhecida entre nós, abrangendo políticas brasileiras, americanas e europeias, industrialização, evolução histórica nacional, problemas de antropologia, sociologia, economia, racismo, doutrinas morais e religiosas, questões técnicas inerentes à engenharia e à estratégia; como sua análise de vultos da história nacional e do seringueiro é exemplo da preocupação de um espírito laborioso na pesquisa e na reivindicação mais apaixonada de um futuro condigno para os brasileiros; como suas páginas em defesa dos oprimidos jamais se desligaram do fervor humano expresso em estilo literário tenso, dramático e incisivo; como em Euclides está sempre presente a expressão do antidogmatismo e a recusa a soluções apriorísticas, não há negar a ele a condição de ensaísta que, exercitando a razão, criticou livre e firmemente, inscrevendo, pela beleza da forma, a sua produção no perímetro literário. E, afortunadamente para todos nós, mereceu todas as atenções de um ensaísta que entendeu outro ensaísta. Porque, senhores, apenas um ensaísta do porte intelectual de Olímpio de Sousa Andrade poderia, por exemplo, solucionar tão dignamente uma suposta ofensa cometida a Euclides por Nabuco na frase que correu mundo e despertou iras: “Um homem que escreve com cipó”... Atentemos para a argumentação preciosa de Olímpio: Querem os descobridores da frase apenas pronunciada que ela viera com sentimento pejorativo; não seria de duvidar, se somente levássemos em conta o fato de que, à inteligência refinada e peregrina de Joaquim Nabuco, deveriam mesmo desagradar expressões másculas, duras, contrastantes e cheias de terra nas quais Euclides — que via em Nabuco “um ator velho” — vazara o seu livro imenso. Na verdade era enorme a distância que os separava: enquanto o historiador da refrega áspera e deprimente de Canudos, em carta a Escobar, batizava a sua “rude pena de caboclo”, o encantador pernambucano de Maçangana, numa linda página de Minha Formação, referia-se à “construção francesa” do seu espírito. (...) // Assim, a sua definição não teria o sentido pejorativo que lhe atribuem, indicando apenas discordância de temperamentos, maneiras diferentes de ver e sentir as coisas. (...) // Sem esse estilo encaracolado, nervoso, torturado, todo feito à semelhança de cipó, dificilmente Os Sertões deixariam de cair na banalidade. Só com ele Euclides poderia transmitir a mensagem que assinalou a redescoberta do Brasil. (...) // Só aquele emaranhado de cipó que o nosso grande Joaquim Nabuco viu no estilo de Os Sertões permitiu a Euclides manter-se à distância de influências outras que não fossem as do interior brasileiro. Se ao longo de sua formação cultural encontramos presenças estranhas, como as de Gobineau, Bucke, Ratzel e Gumplowicz, em parte responsáveis pelo que há de sombra, de pessimismo anômalo em muita coisa que diz, o certo é que, sob qualquer análise rigorosa e honesta, esses autores são como explicáveis acidentes na sua obra. Aqueles painéis adustos, sociedade primária, aqueles sofrimentos revividos nas páginas de Os Sertões exigiram um estilo, uma certa maneira de ver e dizer as coisas, o estilo de Euclides, o estilo que, se quiserem, às vezes dá mesmo a ideia de cipó. (...) // A maioria dos julgamentos passará, sem dúvida. O que permanecerá indestrutível é o juízo de Nabuco, figura admirável de escritor e homem público, extremamente diverso de Euclides, mas que, como o próprio autor de Os Sertões, passou ileso pelo crivo do tempo. (No artigo “Os Sertões numa frase de Nabuco”, inserto em “Três Estudos Complementares” no livro Joaquim Nabuco e o Brasil na América, Nacional/MEC, 1978, 2ª ed., pp. 119 e ss.) Eis aí Olímpio de Sousa Andrade ensaísta. Claro que um escritor assim, duramente vigiado pelo crivo da crítica, ao menos deveria estar na Academia de sua província ou na universidade. Mas não teve tempo para nenhum tipo de política ou public relations. Ajudado pelo temperamento misantropo do bom caipira que era, isolou-se. Estaria esquecido quando, em 1975, nos surpreende, com impacto de guerrilheiro, com a publicação, nada mais, nada menos, de a Caderneta de campo, de Euclides da Cunha, e leva-nos agora à nascente oculta de Os sertões, ou seja, dizia “de um homem à procura da verdade”, da verdade nacional, em toda sua grandeza e tragédia, que o fascinou. (Hélio Damante, no artigo já citado). Foram poucos os meus contactos pessoais com Olímpio de Sousa Andrade. Longas conversações tivemos apenas três, das quais duas em São José do Rio Pardo e com intervalo de muitos anos. Outra, no Rio de Janeiro, quando o visitei no Ministério da Indústria e Comércio, na Praça Mauá, e não pude atender aos reiterados convites que fez de ir a sua casa, na Rua Anchieta. Em todas as ocasiões, a mesma simplicidade, a mesma afabilidade, o mesmo interesse por tudo que dissesse respeito a nossa cidade, a nossos amigos comuns, a nossa grande causa comum. Guardo com justificado desvelo os seus livros, com afetuosas dedicatórias. Dele, de cuja constituição física - baixo, magro, um metro e sessenta, uns cinquenta quilos, cabelos ralos e óculos fortes - seus escritos não dão nenhuma ideia, dele nasceu, cresceu e permaneceu em mim o amigo leal, o incentivador sincero, o vitorioso modesto, o conterrâneo saudoso, o pesquisador veraz, o escritor primoroso. Quero neste instante, especialíssimo para mim, ter podido apresentar a este seleto auditório o perfil moral e intelectual de um dos mais probos escritores brasileiros e, sem dúvida, o maior dos euclidianos. Se o consegui, ainda que em parte, dou-me por muito bem pago. Se falhei, corram os débitos apenas à minha incapacitação. Porque o meu patrono, pela força e verdade de seus escritos, tem o nome gravado no bronze perene, que o resguardará da fugaz memória dos homens.
09/08/2014 |