“Os Sertões” na visão de Euclides

            Publicar seu livro foi para Euclides da Cunha motivo de preocupações das mais diversas ordens. Lidar com a obra publicada, que fez dele um homem que se deitou obscuro e se levantou célebre, causou-lhe sérios problemas.

            Em suas cartas têm-se poucas notícias do que ele escreveu a respeito de sua produção maior. Pinçados aqui os trechos mais significativos de referências ao “livro vingador”, chamam a atenção algumas constantes:

1.      O reconhecimento do inestimável apoio que lhe emprestou Francisco Escobar, seu confidente para o resto da vida.

2.      As preocupações em face das possíveis críticas negativas à obra. Daí talvez o tom reverencial de suas palavras a José Veríssimo e a Araripe Júnior, os primeiros a se manifestarem na imprensa sobre Os Sertões.

3.      O desejo de ver sua obra posta em francês, então a língua universal. Tratou do assunto antes mesmo de o livro estar publicado em português.

4.      A expressão de certo orgulho recatado que lhe proporcionava o livro. Este sentimento é mais perceptível na sua correspondência com o pai.

5.      O cumprimento da palavra empenhada, tanto no oferecimento, jamais retirado, de ceder a Pethion de Villar os direitos de versão para o francês, quanto no honrar compromisso verbal assumido cinco anos antes com José Augusto Pereira Pimenta, o copista que, nesta cidade, tornou legíveis para os tipógrafos os originais do livro. Tendo Euclides lucrado dois contos, cento e noventa e oito mil, setecentos e cinqüenta e dois réis  com a primeira edição de Os Sertões, enviou ao copista exatos dez por cento do apurado, quantia muito apreciável à época. Pethion de Villar  não se desincumbiu do projeto: a primeira versão francesa deve-se a Mme. Sereth-Neu, que residia no Rio de Janeiro. Não alcançou maior repercussão internacional, mesmo porque impressa no Brasil já na década de 40, quando a língua francesa  perdera muito de seu  prestígio cultural.

 

SINCERIDADE

                 “Por isto o meu livro sobre a interessantíssima luta nos sertões da tua terra ainda não apareceu. Está, porém, agora, definitivamente pronto e ainda que seja o primeiro a considerá-lo lardeado [= entremeado, intercalado] de defeitos sérios, entre os quais avulta certa falta de unidade oriunda das condições em que foi escrito, tem, preponderante, uma qualidade que o nobilita – a sinceridade com que foi traçado”.

(A Pethion de Villar; São José do Rio Pardo, 15-5-1900)

 

NASCIMENTO

                 “O meu livro vai muito regularmente. Ainda hoje respondi a carta do Laemmert [seu editor, do Rio de Janeiro] – sobre o papel a empregar. Tenho já revisto algumas provas. Não estará pronto no fim deste [mês] conforme o contrato”.

(A Francisco Escobar; Lorena, 10-4-1902)

 

HOMENAGEM AO AMIGO

             “Pretendo levar-te as primeiras páginas, já definitivamente impressas, do meu livro”.

( A Francisco Escobar; Lorena, 14-5-1902)

 

PREVISÃO DE SUCESSO

             “Venho do Rio, onde fui – celeremente, de um noturno a outro, - para conversar com o Laemmert e saber o dia que, afinal, ficará pronto o meu encaiporado [= azarado, complicado] livro. Felizmente os frios alemães receberam-me num quase entusiasmo, e, quebrado o antigo desalento, quase prevêem  um sucesso àquelas páginas despretensiosas. / Apresso-me em dar-te a notícia  porque foste o meu melhor colaborador neste ermo de São José do Rio Pardo”.

( A Francisco Escobar; Lorena, 10-8-1902)

 

RECEIO DE   CRÍTICAS INJUSTAS

             “Chamaste-me a atenção para vários descuidos dos meus Os Sertões; fui lê-lo com mais cuidado  - e fiquei apavorado! Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente... Um horror! (...) Que isto dizer que estou à mercê de quanto meninote erudito brune [= lustra, dá brilho a]  as esquinas; e passível da férula [= crítica] brutal dos terríveis gramatiqueiros  que passam aí os dias a remascar [= remoer] preposições  e a disciplinar pronomes!”.

( A Francisco Escobar; Lorena, 19-10-1902)

 

ALÍVIO COM A PRIMEIRA CRÍTICA

             “Ao ler no Correio de ontem notícias de seu juízo crítico sobre “Os Sertões”, tive, renascida, uma velha comoção que já supunha morta – a do calouro, nos bons tempos passados, em véspera de exame. E não era para menos, dada a competência do juiz. Felizmente este foi generoso”.

(A José Veríssimo; Lorena, 3-12-1902)

 

SINCERIDADE DE PENSAR

             “Quanto ao seu juízo sobre os “Sertões”, tenho-o, e não preciso dizê-lo, na mais alta conta. Sinto-me verdadeiramente feliz notando que o meu livro, em que a sinceridade de pensar substitui outros requisitos que  não possuo, vai cativando a simpatia dos melhores espíritos e dos melhores corações. Junto por isto a sua carta a outras que aqui estão, formando a melhor crítica ao meu trabalho”.

(A Gastão Cruls; Lorena,17-2-1903)

 

COMPENSAÇÃO

               “Felizmente, de vez em quando lá vem uma compensação a esta vida pouco invejável. Ontem, por exemplo, recebi uma carta do Laemmert declarando-me que é obrigado a apressar a 2.ª edição, já em andamento, d’Os Sertões, para atender a pedidos que lhe chegam até de Mato Grosso – e aos quais não pôde satisfazer por estar esgotada a 1.ª   Isto em dois meses!”.

(A seu pai; Lorena, 19-2-1903)

 

VENCEDOR SEM PATRONOS

               “ A opinião do grande chefe monarquista [Visconde de Ouro Preto] é esta: Os Sertões são o único livro digno de tal nome, que se publicou no Brasil depois de 15 de novembro. (...) Venci por mim só, sem reclames, sem patronos, sem a Rua do Ouvidor [ símbolo da vida sociocultural do Rio de Janeiro] e sem rodas”.

(A seu pai; Lorena, 25-2-1903)

 

RECRUTA TRIUNFADOR

            “O Jornal era esperado. Às dez horas da noite, tinha-o lido quase toda a roda literária paulista, e às dez e meia eu saí da redação do Estado de São Paulo com o enorme estonteamento de um recruta transmudado repentinamente num triunfador”.

(A Araripe Júnior; Lorena, 9-3-1903)

 

PAGANDO O DÍZIMO AO CALÍGRAFO

             Recebi afinal a carta do Laemmert – e tenho presente a ordem de Rs.2:198$75 – líquido que coube da 1.ª edição dos “Sertões”. À vista disso escrevi hoje ao José Augusto, pedindo-lhe dizer-me para onde enviar a quantia de  219$875, que lhe é devida pelo nosso trato verbal”.

(A Francisco Escobar; Lorena, 26-4-1903)

 

SONHO IRREALIZADO

             “ E venho lembrar-te de uma velha promessa, feita aí, quando os “Sertões” eram apenas um projeto: traduzi-lo em francês. Se quiser fazê-lo cedo todos os direitos, abrindo mão de todos os lucros materiais que disto me possam advir; e estou pronto a firmar qualquer compromisso escrito, nesse sentido”.

( A Pethion de Villar; Lorena, 6-12-1903)

  

O GRANDE NETO

          “Em todos os portos onde saltei [= desci do navio] fui gentilmente recebido graças à influência de seu grande neto Os Sertões. Realmente nunca imaginei que ele fosse tão longe”.

(A seu pai; Manaus, 30-12-1904)

 

SAUDADES DO RIO PARDO

           “Que saudades do meu escritório de folhas de zinco e sarrafos, da margem do rio Pardo! Creio que se persistir nesta agitação estéril não produzirei  mais nada de duradouro. Já fiz dois livros e não sei sair, e ainda sou o autor, dos quantos artigos depois d’Os Sertões!  Precisamos conversar sobre estas coisas”.

( A Francisco Escobar; Rio de Janeiro, 8-4-1908)

 

SEU ÚNICO LIVRO

            “Pede-me que lhe mande Os Sertões, mas preciso dizer-lhe antes  que não o enviei espontaneamente porque este livro bárbaro da minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de força, é destoante da maneira tranqüila com que considero hoje a vida, que a mim mesmo às vezes custa entendê-lo. De qualquer modo, é o primogênito do meu espírito, embora críticos audazes afirmem ser o meu único livro... Será verdade? Custa-me, contudo, admitir que tenha chegado com ele a um ponto culminante, ficando todo o resto da existência para descer esta altura. Depois de o ler, diga-me, ilustre amigo, se estarei condenado a destino tão pouco desejável”. [Obs.: Esta carta possui variantes de redação.]

( A Agustín de Vedia; Rio de Janeiro, provavelmente em outubro de 1908)

 

PARENTE MAIS VELHO

             “O Inferno Verde agitou um pouco o sangue-frio destes batráquios, porque é um parente mais novo e mais vivo d’Os Sertões. Disse-o o grande mestre Araripe Júnior; e o parecer do nosso único ensaísta, escandalizando furiosamente a cabotinagem covarde, encheu-me do mais justificado orgulho”.

( A Alberto Rangel; Rio de Janeiro, 28-9-1908)

 

 

Breve notícia sobre os destinatários:

PETHION DE VILLAR -  nome literário de Egas Moniz Barreto de Aragão. Escritor simbolista baiano.

FRANCISCO ESCOBAR – intendente de São José do Rio Pardo à época da passagem de Euclides pela cidade. Foi seu grande incentivador.

JOSÉ VERÍSSIMO (DIAS DE MATOS) – crítico literário, historiador e ensaísta. Autor de uma História da Literatura Brasileira.

GASTÃO CRULS – romancista e contista. Autor de A Amazônia Misteriosa.

MANUEL RODRIGUES PIMENTA DA CUNHA – pai de Euclides.

(TRISTÃO DE ALENCAR) ARARIPE JÚNIOR - crítico e romancista cearense.

AGUSTÍN DE VEDIA – escritor argentino.

ALBERTO RANGEL – escritor brasileiro, autor de Inferno Verde, prefaciado por Euclides da Cunha.

 

09/08/2006
(emelauria@uol.com.br)

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